segunda-feira, setembro 11, 2006

 

Carta n.º 1 - Rainer Maria Rilke

Paris, 17 de Fevereiro de 1903*

CARO SENHOR,

A sua carta chegou-me apenas há alguns dias. Quero agradecer-lhe pela sua grande e estimada confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso debruçar-me sobre o carácter dos seus versos. Não pois não tenho a veleidade de emitir qualquer tipo de juízo de valor. Nada é menos capaz de apreender uma obra de arte do que as palavras críticas: quase sempre resultam daí mal-entendidos mais ou menos felizes. Nem sempre as coisas são tão compreensíveis ou dizíveis como muitas vezes nos querem fazer crer; a maioria dos acontecimentos são inexprimíveis, atigem a sua plenitude num espaço em que nunca nenhuma palavra penetrou, e os mais inexprimíveis de todos são as obras de arte, seres secretos cuja vida permanece depois da nossa se extinguir.

Feito este reparo, permita-me apenas dizer-lhe que os seus versos não possuem um carácter próprio, mas antes indícios discretos e encobertos de personalidade própria. Sinto-o com maior evidência no último poema, «A minha alma». Existe ali algo de peculiar que deseja exprimir-se e revelar-se. E no belo poema «A Leopardi»** surge talvez uma espécie de relação de parentesco com esse grande solitário. Contudo, os poemas ainda não têm identidade própria; não são autómonos - incluindo o último e o que é dedicado a Leopardi. A amável carta que os acompanhou não deixa de esclarecer certas falhas de que me apercebi durante a leitura dos seus versos, sem que, no entanto, consiga mencioná-las em concreto.

Pergunta-me se os seus versos são bons. Pergunta-me a mim. Antes disso, já perguntou a outras pessoas. Envia-os às revistas. Compara-os com outros poemas e fica nervoso quando algumas redacções rejeitam as suas tentativas. Pois bem - e uma vez que me concedeu autorização para o aconselhar - peço-lhe que desista de tudo isso. Está a olhar para o exterior, e isso é algo que não deveria fazer, muito especialmente agora. Ninguém pode dar-lhe conselhos ou ajudá-lo, ninguém. Só existe um meio. Entre em si mesmo. Procure as razões que o levama escrever; verifique se elas lançam raízes nas profundezas do seu coração, pergunte e responda a si mesmo se morreria caso o impedissem de escrever. E acima de tudo: pergunte a si mesmo no mais silencioso da noite: tenho de escrever? Mergulhe nos abismos da sua essência em busca de uma resposta profunda. E caso esta seja afirmativa, se puder responder a esta pergunta séria com um simples e forte «Sim, tenho», então construa a sua vida à volta dessa necessidade; a sua vida tem de tornar-se, até no mais indiferente e insignificante dos momentos, num sinal e num testemunho desse impulso. É então que deve aproximar-se da natureza. Nesse momento procure dizer, como se fosse o primeiro ser humano, o que vê e sente e ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite de início os temas demasiado comuns e correntes: esses são os mais difíceis, pois é necessária uma grande força e maturidade para dar algo de próprio àquilo em que já existem muitas e boas tradições, em parte brilhantes. Por isso, fuja dos motivos mais comuns e prefira aqueles que o seu próprio dia-a-dia lhe proporciona; descreva as suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a fé em relação a qualquer coisa de belo - descreva tudo isso com uma sinceridade íntima, calma, humilde e para os exprimir use as coisas que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos e os objectos de que se recorda. Se o seu dia-a-dia lhe parece pobre, não o lamente, lamente-se a si mesmo, diga a si mesmo que não é sufucientemente poeta para chamar a si mesmo as suas riquezas; pois para o criador nada é pobre nem há lugar pobre ou indiferente. E mesmo que estivesse numa prisão cujas paredes não deixassem chegar até aos seus sentidos nenhum ruído do mundo exterior - não continuaria ainda assim a ter a sua infância, essa maravilhosa e principesca riqueza, essa arca de tesouros que são as recordações? Volte as suas tentações nesse sentido. Procure despertar as sensações esquecidas desse longínquo passado; a sua personalidade sairá reforçada, a sua solidão irá alargar-se e tornar-se numa residência nas horas incertas do dia, e o ruído dos outros passará na distância. - E quando desse voltar-se para o seu interior, quando desse mergulhar na sua própria essência resultarem versos, não lhe ocorrerá sequer perguntar a alguém se esses versos são bons. Também não fará nenhuma tentativa para que as revistas se interessem por esses trabalhos, pois terá para com eles um sentimento de posse muito estimada, verá neles um fragmento e uma voz da sua vida. Uma obra de arte é boa quando surge da necessidade. Na sua forma de origem está o seu veredicto: nenhum outro é possível. Por isso, caríssimo senhor, não poderia dar-lhe outro conselho a não ser este: entre em si mesmo e examine as profundezas das quais a sua vida emana; é na sua fonte que encontrará a resposta à pergunta sobre se deve criar. Assuma-a tal como lhe soa, sem dela duvidar. Talvez tenha a demonstração que está destinado a ser artista. Nesse caso assuma o seu destino e traga-o consigo, ao seu peso e à sua grandeza, sem nunca perguntar pela recompensa que possa vir do exterior. Pois o criador tem de ser um mundo só seu e tudo encontrar em si mesmo e na natureza a que se uniu.

No entanto, talvez tenha de prescindir de ser poeta mesmo depois desta descida em si e à sua solidão (basta, como disse, sentir que se pode viver sem escrever, para que isso nos seja interdito). Mas, mesmo que assim seja, este recolhimento que lhe peço não terá sido em vão. Em todo o caso, a sua vida tomará a partir daí os seus próprios camiminhos, e que estes lhe sejam bons, fecundos e largos, é o que eu lhe desejo mais do que consigo dizer.

Que mais posso acrescentar? Tudo me parece ter sido realçado na sua justa medida; e, por fim, queria apenas aconselhá-lo a crescer de forma calma e séria através do seus processo de amadurecimento; nada poderá perturbá-lo mais do que olhar para o exterior e esperar que de lá venha uma resposta para perguntas a que apenas o seu mais íntimo sentimento nos momentos de silêncio possa responder.

Foi para mim uma alegria encontrar na sua missiva o nome do Senhor Professor Horaèek; guardo por esse amável sábio uma grande admiração e uma gratidão que atravessa o decurso dos anos. Queira transmitir-lhe, por favor, este meu sentimento; apraz-me muito o facto de ele ainda me ter nos seus pensamentos; é algo que sei apreciar.

Ao mesmo tempo devolvo-lhe os versos que amavelmente me confiou. E agradeço-lhe de novo pela grandeza e cordialidade da sua confiança, da qual, através desta resposta sincera e escrita o melhor que sou capaz, procurei tornar-me um pouco mais digno que aquilo que, como estranho, na verdade sou.

Com toda a simpatia e dedicação,
Rainer Maria Rilke

RILKE, Rainer Maria
e WOOLF, Virginia, Cartas a Jovens Poetas, tradução: Lino Marques e Ana Mateus, Relógio d'Água, Setembro de 2003.



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* Vindo do castelo de Haseldorf, em Holstein, onde estivera a convite do príncipe Erich von Schonaich-Carolatch, Rilke chegara a Paris em finais de Agosto de 1902 onde por sugestão de sua mulher, a escultora Clara Westhoff, tencionava escrever uma monografia sobre Rodin. A partir de Outubro instalara-se com Clara na Rue Abbé-de-l'Epée.

** Giacomo Leopardi (1798-1837), escritor italiano, nascido numa família nobre de Recanati, então parte do Estado Pontifício. Teve uma vida de desilusões amorosas e solidão. Deixou uma obra que deu o tom à poesia romântica italiana do séc. XIX.

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