quarta-feira, agosto 30, 2006

 

Enriquecimento

De geração em geração atravessa-se a esperança de valorização, de enriquecimento e ascensão social. É um objectivo comum à espécie humana, indepen- dentemente dos credos e cartilhas ideológicas. É verdade que o capitalismo se afirmou na promessa de enriquecimento e na livre iniciativa. Em qualquer caso, a ambição de chegar mais longe do que os antepassados faz parte desde sempre da matriz de progresso humano.

Há muito que os Estados Unidos da América são sinónimo de terra de oportunidades. O sonho americano tornou--se um estereótipo da eficácia dos desejos. E assim foi muitas vezes, assim será muitas vezes. O american way of life vulgarizou-se como paradigma a desejar, invejar e imitar. O cinema e a cultura americana encarregaram-se do contágio global. Não há razões para pensar que durante décadas a mobilidade social não tenha sido muitas vezes vertiginosa nas terras do Tio Sam. Com trabalho e perseverança muitos pobres chegaram a ricos fortalecendo o manifesto progresso.

Já sabíamos que nem sempre a terra das oportunidades era um paraíso. Mi-norias étnicas surgiram duradouramente discriminadas e há um ano o furacão Katrina encarregou-se de o de-monstrar tragicamente. Do que não tínhamos consciência é de que, feitas as contas, afinal, os EUA são no seu todo um dos países onde é mais difícil a um pobre libertar-se da sua condição. Quan-to menores forem os rendimentos dos pais, menores tendem a ser os rendimentos dos filhos. Surpresa, ou talvez não, é na Escandinávia que a igualdade de oportunidades melhores resultados tem produzido. Os EUA não deixaram de ser terra de excelência, mas são cada vez mais terra de desigualdade. A pedra- -de-toque da balança dos rendimentos é a educação. A escola americana preocupa-se sobretudo com as elites. Entre os nórdicos centra-se na garantia de sólidos rendimentos mínimos educacionais.

Portugal aproxima-se dos EUA na desigualdade de rendimentos. A grande maioria dos filhos cujos pais terminaram apenas o ensino primário não conclui o ensino secundário. A escola portuguesa massificou-se, mas não se qualificou. Pior, não se ocupa em garantir a aquisição de conhecimentos básicos a todos os que frequentam o sistema de ensino. Enquanto a escola não se organizar para a eficácia na aprendizagem, apenas os que têm rendimentos e ambiente familiar propício podem contornar as dificuldades. É esse o passo em frente que te-mos de dar. Mais envolvimento na aprendizagem e mais critérios de mérito no escrutínio das oportunidades.

António José Teixeira

Ediorial do jornal Diário de Notícias - 29.08.06.

 

Jornalismo 'vale tudo'

O ex-colaborador da RTP Eduardo Cintra Torres (ECT), que assina alegremente textos nas páginas de media do Público, inventou um novo conceito de jornalismo: o "vale tudo". Para abreviar, o VT.

O VT distingue-se por misturar o que os "livros de estilo" recomendam que não se misture: opinião com informação. Exemplo: ECT critica a RTP pelos seus critérios editoriais. É uma opinião. Para sustentar a opinião, diz que a Direcção da estação recebe ordens do Governo. Trata-se de um facto. Como pode dar processo, ECT transforma--se em jornalista e defende-se com "fontes" que obviamente não denuncia. Está então a dar notícias...

Aplicado ao próprio Cintra Torres (mero exercício de estilo, claro), permitir-me-ia afirmar que, segundo as minhas fontes (eu, jornalista), foi o PSD a encomendar o texto ao crítico, prometendo-lhe que voltará a ganhar dinheiro na RTP quando o partido regressar ao poder. Agora, o "eu cronista" opina: é escandaloso que tal suceda e alguém no Pú-blico devia pôr ordem em ECT. Sem dificuldade, opinei, dei notícias, protegi a minha retaguarda e deixei uma pessoa na lama. É assim que se faz VT. Nunca se saberia se o que escrevi é verdade ou mentira.

A virtude desta espécie de jornalismo é a impunidade: qualquer um pode escrever o que quer debaixo do chapéu das "fontes", ou da liberdade de opinião, conforme a conveniência. ECT sabe como funciona a comunicação: lançada a atoarda, fica o carimbo colado a quem ele critica, e depois quem está mal que se queixe. A justiça não funciona e a memória dos homens é curta. Ele conta com isso.

É Portugal e o português no seu pior: le-viandade na escrita, pose "eu cá é que os topo", esperteza saloia de quem sabe que passa impune, uma pesada ambição de um dia ser realmente respeitado e até mesmo contratado e uma postura arrogante de quem julga saber da matéria. Não sabe. Fez-se crítico porque tanto insistiu que conseguiu. Num país civilizado, há muito que escrevia nas paredes de sua casa, tal a quantidade de insinuações e acusações (por provar) que tem feito, além do conflito de interesses em que cai sempre que colabora com canais de TV. Em Portugal, não só existe como se assemelha a uma voz autorizada. Bom, sejamos rigorosos: a especialidade mais próxima da televisão que ECT alguma vez alcançou foi a vender antenas parabólicas. Seria pior se tivessem sido televendas...

Pedro Rolo Duarte

Artigo opinião publicado no jornal Diário de Notícias.

 

Porque a América precisa do Hezbollah


Horas depois de um cessar-fogo ter interrompido a guerra de cinco semanas entre Israel e as milícias apoiadas pelo Irão no Líbano, relatou o New York Times, "centenas de membros do Hezbollah espalhados por dezenas de aldeias do Sul do Líbano começaram a limpar, a organizar e a fazer um levantamento dos estragos. Homens em buldozzers dedicaram-se a abrir caminhos entre gigantescas pilhas de escombros. Estradas que estavam bloqueadas pelos destroços dos edifícios já estão utilizáveis um dia depois do início do cessar-fogo." Quem se importa que o Hezbollah seja considerado pelo Departamento de Estado [dos EUA] uma organização terrorista? Ao contrário do nosso inútil governo, ele consegue que as coisas sejam feitas!

Os cidadãos de Nova Orleães precisam desesperadamente do espírito empreendedor terrorista. Fora da zona turística do Bairro Francês (french quarter), escreve Jed Horne no The New Republic, o que era até 2005 a cidade de maior charme dos EUA permanece "uma zona de desastre, numa área cinco vezes o tamanho de Manhattan".

Um ano depois do que deveria ter sido um evento rotineiro, um furacão na costa do Golfo, metade da população da cidade continua refugiada - lixada por um governo que não mexeu um dedo sequer para fingir que se importa. Horne descreve "vastos espaços de uma cidade esvaziada, como se tivesse sido atingida por uma bomba de neutrões."
Nova Orleães é uma cidade morta. Incrivelmente, os políticos não ligam nenhuma. "A maioria da água foi-se embora", informou o jornal British Daily Mirror no aniversário da tempestade, "mas pouca coisa mudou. Circulando pelas ruas, é chocante ver quanta devastação permanece e quão pouca reconstrução foi feita."

Os americanos viram incrédulos o seu governo responder aos desesperados apelos das doentes e esfomeadas vítimas do Katrina internando-as em campos de concentração. E depois entregou-lhes cartões de débito de 2000 dólares - uma insignificância insultuosa - para compensá-las de terem perdido tudo o que possuíam. Qualquer um pôde ver que o governo federal deixou de cumprir a sua obrigação de proteger os cidadãos. Não só se recusou a reforçar as barragens à beira do desmoronamento, como nem sequer tentou enviar ajuda depois da há muito prevista inundação. Os Estados Unidos da América, contudo, são dirigidos por homens que vêem coisas muito diferentes de, bem, todo o resto da população. Eles acham, na verdade, que as vítimas do furacão Katrina receberam demasiado.

"Dois mil dólares nas mãos de uma pessoa, isso é muito dinheiro", explicou o director da Agência Federal de Gestão de Emergências (FEMA) David Paulison, numa declaração em 23 de Julho. Devido aos cortes orçamentais de Bush, as vítimas de futuros desastres vão ter de se contentar com meros 500 dólares.
Percebemos que os EUA se transformaram num país de Terceiro Mundo quando os libaneses bombardeados recebem mais do que nós. Lembram-se que as vítimas do furacão não conseguiam contacto com a FEMA devido à linha verde perpetuamente ocupada? Prometendo que os funcionários do Hezbollah "nas cidades e aldeias, vão contactar os que tiveram as casas destruídas para ajudá-los a reconstrui-las", o sheik Hassan Nasrallah ordenou aos militantes do Hezbollah que percorressem os quarteirões destruídos e começassem imediatamente os trabalhos de reparação. O Hezbollah dá "mobília decente e apropriada" e um ano de renda de casa grátis a todos os libaneses que perderam os seus lares. Ao contrário dos funcionários do governo racistas que, na costa do Golfo, há um ano, resgatavam os brancos e disparavam sobre os negros, a oferta do grupo terrorista xiita também se aplica aos sunitas, aos cristãos e até aos judeus. "A reputação do Hezbollah como rede social eficiente", observou o New York Times, "ficou comprovada em todo o lado. Jovens com walkie-talkies e pranchetas esquadrinharam os bairros xiitas do sul de Bint Jbail, tirando notas da extensão dos estragos. Os homens do Hezbollah também foram de porta em porta perguntando aos moradores que ajuda precisavam." Com terroristas como estes, quem precisa da FEMA?

Um ano depois do Katrina, ainda se retiram corpos dos escombros. Dezenas de cadáveres continuam por identificar; o presidente, o governador e o presidente da câmara continuam a ser acusados de ineficiência. George W. Bush ainda se recusa a reconhecer as suas responsabilidades. Apenas um dia depois do cessar-fogo do Líbano, porém, o sheik Nasrallah já tinha feito um relatório completo dos estragos causados pela campanha de bombardeamentos de Israel e já desencadeara um amplo programa de reconstrução. "Até agora", disse o líder do Hezbollah, "a contagem inicial de que dispomos de casas totalmente destruídas ultrapassa as 15 mil. Claro que não podemos esperar pelo governo e os seus veículos pesados e maquinaria, porque podem demorar um bocado."
Como muitas vezes acontece nas emergências nos EUA, os preços da habitação, da água, da gasolina e de outros produtos essenciais subiram em flecha durante e depois do Katrina. Nasrallah, em contrapartida, advertiu os empresários para não se aproveitarem da situação. "Ninguém deve aumentar preços devido ao crescimento da procura".

Nunca discutas com um homem que compra AK-47 às caixas.

"A força do Hezbollah", diz Amal Saad-Ghorayeb, professor da Universidade Libanesa-Americana de Beirute e especialista da organização, em grande parte deriva do "grande vazio deixado pelo Estado".
Parece familiar? É, para a população de Ladysmith, Wisconsin. A cidade rural, destruída por um tornado em 2002, foi abandonada pelo governo a quem a sua população pagou impostos durante toda a vida.

Talvez possamos contratar o Hezbollah para reconstruir o World Trade Center.

Ted Rall

Artigo retirado do site Esquerda.

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