sábado, setembro 16, 2006

 

Afeganistão: missão não comprida

Cinco anos depois da queda dos taliban e da sua substituição em Cabul por um regime classificado de pró-ocidental e sempre sob pressão, a pergunta assombra todos os afegãos: para onde vamos nós? “Quando regressei, em Novembro de 2001, estava eufórica, recorda uma afegã regressada do estrangeiro. Hoje, não sei o que se vai passar e, como toda a gente, tenho medo que o país não se reconstrua nunca.

Os progressos realizados parecem cada dia mais frágeis e irrisórios face à crescente insegurança politica, económica e criminal.

Se a insegurança é mais visível nas províncias do Sul, onde os combates, os bombardeamentos e as incursões dos exércitos são o pão-nosso de cada dia dos aldeões, tal facto é contestado numa população que não compreende como “a maior potência do mundo” não conseguiu pôr o país a andar sobre os carris.

Na fachada, o renascimento das instituições, com um presidente e um Parlamento eleitos por sufrágio universal, uma Constituição, uma nova moeda, um novo hino nacional, uma nova bandeira, um exército e uma polícia em formação, constitui um avanço impressionante. Mas, eleito há apenas dois anos, o presidente Hamid Karzai não impressiona ninguém. Mesmo no seu feudo de Kandahar, que o elegeu por maioria de 80%, o desencantamento é total. “Se ele se voltar candidatar, não votarei outra vez nele”, confessa Ahmad Wali, um jovem professor que teve que deixar a sua aldeia na sequência das ameaças dos taliban. “Lamento o meu voto. Prometeu tudo, mas nada fez”, acrescenta Abdul Wali, um agricultor.

A própria comunidade internacional também perde as ilusões, face a um presidente “mais oriental do que julgámos”, como disse um diplomata, que acrescenta que a sua politica permanente de “acordos” tende frequentemente a estender-se ao “comprometimento”. Resultado: muito afegãos consideram hoje a democracia como um luxo desnecessário para o seu país. “Não é a democracia, é a anarquia”, quem reina, diz um advogado. Do que nós precisamos, acrescenta, é de um homem forte, que tome decisões e as faça aplicar. A Administração Karzai, conclui, falhou totalmente ao tentar ganhar a confiança da população.”

Na melhor das hipóteses, o governo é considerado pelos afegãos como inexistente, pior como um grupo de mafiosos, corruptos e sem escrúpulos. “Nunca, na história do Afeganistão, a corrupção atingiu tais níveis, do mais alto ao mais baixo”, admite um ministro. “Os professores eram os últimos funcionários honestos, afirma um professor universitário, mas acabou. Hoje, os meus filhos têm que comprar um cartão de telefone ao professor para que este aceite corrigir os seus trabalhos de casa.”

Formado pela comunidade internacional, o exército nacional, que conta aproximadamente 30 000 homens, está longe de ser consensual, mesmo que beneficie de uma imagem muito mais favorável que a da policia. Este exército, do qual a maior parte combate ao lado da NATO ou da coligação dirigida pelos Estados Unidos, permanece, na maior parte das vezes, incapaz de operar sozinho. Não tem meios logísticos, pouco material de comunicação e a taxa de desertores ou de não renovação dos contratos é tão elevada que estão longe de atingir os 70 000 homens exigidos pelos Estado Unidos.

Mal treinada, mal equipada, desmotivada, a policia está minada pela corrupção. Em muitas cidades, os polícias são ainda os milicianos, sobretudo leais ao seu comandante, cujo objectivo não é forçosamente a aplicação da lei. O Afeganistão é um estado sem lei onde, por exemplo, as companhias privadas de segurança, que empregam milhares de homens armados, actuam sem mesmo estar credenciadas pelo ministério do interior, onde as grandes limousines sem matricula e com vidros pretos, beneficiam de toda a disponibilidade da policia, onde os estrangeiros inutilizam vias públicas inteiras, sob o pretexto da segurança.

Neste contexto, a justiça, cuja reforma é ainda hesitante, resume-se à lei do mais forte. Os tribunais especiais com julgamentos em curso de elevados custos que deviam atacar o problema da droga por cima, isto é, tornando-se pesados ao traficantes ao invés dos pequenos agricultores, têm até agora 600 dossiês, que se referem essencialmente aos motoristas dos comboios de ópio.

Intocáveis porque protegidos até nas altas esferas do Estado, os grandes senhores da droga prosperam. Este ano, o Afeganistão bate todos os recordes de produção de papoila com uma colheita de 6 100 toneladas, ou seja, depois de tratada, enviarão 600 toneladas de heroína potencial. Entre a falta de vontade politica e tendo em conta a corrupção geral, os 2 mil milhões de dólares gastos pela comunidade internacional para lutar contra este flagelo, que ameaça mesmo a existência do país, de nada serviram. Hoje, o Afeganistão é sem dúvida o único narco-Estado para a comunidade internacional…

Ainda que somente 6% dos afegãos disponha de electricidade, que a maioria da população sofra de subnutrição, que só 40% das crianças são vacinadas, que um mulher morra em cada meia hora com complicações ligadas ao parto, muitos se interrogam sobre a eficácia dos 15 mil milhões de dólares já derramados no país.

Certamente, escolas e clínicas foram construídas, estradas e construções públicas restauradas, canais de irrigação limpos, mas muito se fez na desordem, sem coordenação, sem consideração pelas necessidades reais, sem controlo de qualidade. Num relatório devastador sobre as “fraquezas da reconstrução” realizado pela Corpwatch, uma organização não governamental (ONG) que investiga a utilização da ajuda, Fariba Nawa sublinha os exemplos de reconstruções defeituosas, da delapidação ou má gestão do dinheiro.

Sobre um programa de 119 milhões de dólares atribuído à empresa americana Chemonics International Inc. para cultivos alternativos à droga, somente 4 milhões foram gastos, afirma Fariba Nawa. Os especialistas não sabem onde ir, não conhecem as comunidades que supostamente deviam ajudar, não se coordenam com outras agências ou governo”, diz, sublinhando “as fraquezas da supervisão dos projectos”. Por razões de segurança, os doadores não estão presentes nos locais dos projectos, não sabem como estes são executados, ou mesmo se o são…

Falta coordenação no seio da comunidade internacional como entre esta e o governo medronheiro por vezes absurdo. Duas organizações internacionais aperceberam-se recentemente, por exemplo, que pagavam cada uma a um conselheiro de presidente Karzai um salário mensal de 20 000 dólares. Um professor que arrisca a sua vida nas províncias do Sul recebe quinhentas vezes menos: cerca de 40 dólares por mês! Os salários de certos especialistas internacionais e certos Afegãos regressados do estrangeiro alimentam o ressentimento e as frustrações da maioria da população que tem que lutar para sobreviver. “O Afeganistão sempre foi pobre, mas antes, em meses, não víamos esta riqueza arrogante que se instala hoje em Cabul e nas grandes cidades”, desola-se um antigo ministro.

O dinheiro da comunidade internacional foi para os bolsos dos oficiais, o povo está enraivecido, e é por isto que ouvimos as sirenes dos talibans”, explica Wali Mohammad, um agricultor de Kandahar. Esta visão das coisas não abrange sem dúvida todas as razões do regresso em força dos taliban, mas estes beneficiam largamente da frustração geral. A insegurança crescente no país fez soar o alarme no seio de uma comunidade internacional que prefere demasiadas vezes esconder-se das realidades por medo do que seria necessário para lhe fazer face.

Índice patente da deterioração da situação, o número de soldados estrangeiros mobilizados no país é hoje o triplo do que era em 2002 e 2003. A NATO, surpreendida “pela intensidade dos combates” da semana passada, pede de novo reforços contando já com 21 000 homens oriundos de 37 nações. A coligação comandada pelo Estados Unidos conta por seu torno cerca de 20 000 homens. A 8 de Setembro, as perdas militares estrangeiras registadas este ano – 149 mortos – excedem já as de 2005 – 130 –, as quais representavam o dobro das de 2004.

Os talibans, particularmente activos nas províncias do Sul, e seus aliados, fies do antigo primeiro ministro Gulbuddin Hekmatyar ou da Al-Qaeda, mais presente no leste do Afeganistão, multiplicam as suas operações, e nomeadamente os ataques suicidas, cujo número aumentou um terço. De acordo com os números da NATO, mais de 130 pessoas foram mortas este ano em atentados suicidas, dos quais 84% são civis.

A maior parte dos atentados deste tipo teve lugar em Kandahar ou nos arredores. Longe, porém, da propaganda taliban, muitos em Kandahar acusam os estrangeiros de serem os causadores das mortes de civis. “As tropas patrulham a cidade, há um ataque, e somos nós que somos mortos”, afirma Abdul Sattar, cujo irmão foi morto numa operação suicida que fez 21 mortos no bazar de Panjwayi, a 3 de Agosto.

Antiga “capital” dos talibans, Kandahar vive doravante no medo. “Quando mando os meus filhos para a escola de manhã, tenho medo até que voltem”, confessa o director duma ONG afegã. Os incidentes são quotidianos nesta cidade. Os taliban circulam sem problema. “Tenho medo de ensinar abertamente”, cofia Ahmad Wali, que reúne hoje os seus alunos em casa. O sucesso do “novo Afeganistão” passa pelo regresso à escola de cerca de 5 milhões de crianças, das quais 1,6 milhões são raparigas, o problema está nas províncias do Sul. Mais de 300 escolas foram destruídas pelos insurrectos e a maior parte das que resistiram não funcionam.

O ano passado, éramos 55 na minha turma”, conta Ali Ahmad, 16 anos, que estuda numa escola situada nas traseiras do estado-maior das forças armadas da polícia de Kandahar. “Depois da explosão em frente à sede da polícia há oito meses, não somos mais do que 40. Há três meses, uma carta de ameaças foi deixada durante a noite à porta: 15 outros alunos partiram. Chegam novas cartas neste momento, portanto não sei bem quantos seremos este ano”.

De acordo com numerosos testemunhos de aldeões do Sul, os talibans circulam livremente em todos os distritos das províncias. Consequência da sua propaganda: muitos exigem a partida dos militares estrangeiros. "As pessoas estão revoltadas contra as tropas estrangeiras, porque têm muito poder, mas nada fazem por nós, e sentem-se traídos”, afirma um responsável de segurança. “O governo de Karzai, do qual são aliados, não tem peso nas grandes cidades. Nos distritos provincianos, não tem nenhum apoio, e as pessoas tornam-se apoiantes dos talibans”, reconhece.

Se a situação na maioria norte do Afeganistão é melhor, a manutenção dos “senhores da guerra” que resolvem os seus problemas a tiro continua a fazer pesar a insegurança sobre uma grande parte da população. A criminalidade aumenta consideravelmente e a ANSO (uma ONG que se ocupa da segurança dos seus homólogos) notava recentemente para a região de Cabul “um crescimento alarmante do número de crimes”.

Apesar do seu desapontamento e incompreensão, os Afegãos, na sua grande maioria, não perderam totalmente a esperança. Alguns reconhecem pequenos progressos na vida quotidiana – o telemóvel, cinco canais de televisão, jornais, a presença de estrangeiros, fonte de dificuldades mas igualmente de empregos, demonstra de facto que o país deixou de ser um pária. As mulheres com assento no Parlamento, aquelas que podem trabalhar e estudar, são as que estão mais apreensivas. O restabelecimento de um departamento da “prevenção do vício e da promoção da virtude” não foi criado para as tranquilizar, enquanto os conservadores aproveitam o vazio criado pela falta de directivas governamentais para se reorganizarem. As promessas apregoadas todos os dias não fizeram mais do que acentuar o ressentimento das populações já desiludidas e que muitos viam na presença estrangeira a sua salvação.

Quando o Americanos chegaram, toda a população os felicitou, recorda-se Noor Ali, professor em Kandahar. Mas mentiram, e agora não estamos mais interessados no desenvolvimento e reabilitação. Apenas queremos paz e segurança.

Françoise Chipaux (traduzido por: joão Entresede)


Artigo
publicado no jornal Le Monde, dia 12.09.06)

Fotografia: Helmand Province, Afeganistão, 1980, por Steve McCurry.

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