terça-feira, julho 11, 2006
Igreja espanhola, vitima e carrasco
“Porquê, Senhor, permitiste isto?”, perguntou recentemente o papa Bento XVI aquando da sua visita ao campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Setenta anos depois do início da guerra de Espanha, eis uma questão que se deveria igualmente colocar à Igreja de Espanha. Na época, as imagens da destruição causada pela violência anticlerical deram a volta ao mundo e valeram aos franquistas uma vasta onda de simpatia; mas no seu papel, a Igreja protegeu, matou e escondeu a guerra de exterminação levada a acabo pelo militares rebeldes em nome da pátria e da religião. De seguida, muito ao conforto do que lhe dava a ditadura de Franco, nunca mais quis saber nada sobre as vítimas do outro campo, nimbando os seus próprios mártires de ritos e de mitologias que sobrevivem ainda nos nossos dias. É tempo, sem dúvida, de acabar de mergulhar nestes acontecimentos e de parar de comemorar, com beatificações e canonizações, um passado que não tem muito de heróico nem de glorioso.
Nas cidades e nas aldeias onde o golpe de Estado de 1936 fracassou, a Igreja católica foi alvo, segundo as palavras do primaz de Espanha, Isidro Gomá, de um “furor satânico”, um suplício devastador e de uma amplitude colossal. Queimar uma Igreja, assassinar um religioso, tal foi o primeiro reflexo de muitos imediatamente a seguir fracasso da revolta. Mais de 6 800 eclesiásticos, do clero regular como do secular, foram, deste modo, assassinados, inúmeras igrejas e lugares santos pilhados e profanados, obras de arte e objectos de culto saqueados, ou mesmo destruídos.
A Igreja católica justificou sempre a sua postura e o seu comportamento pela atrocidade deste anticlericalismo. Não é, no entanto, este “ódio satânico” que empurra a Igreja e os católicos para o lado dos soldados insurgidos. Pode reforçar o seu empenhamento, mas não foi a causa.
Desde do primeiro golpe dos rebeldes (17 de Julho de 1936), a Igreja falou e agiu. Alinhou sem vergonha atrás dos partidários do golpe de Estado, que de restou festejou com as massas católicas como uma libertação. Apelando aos fiéis à união contra o “laicismo-judeo-soviético-maçónico”, como lhe chamou o bispo de Leão, José Alvarez Miranda, fez da guerra uma “cruzada religiosa”. De resto, a cumplicidade do clero com o terror militar e fascista foi absoluta e não houve necessidade de nenhum anticlericalismo para se manifestar. Do primaz Domá ao mais pequeno pároco de Saragoça, Salamanca ou Granada, todos estavam ao correntes dos massacres, ouviam os tiros, viam as pessoas ser levadas à força, recebiam os parentes dos prisioneiros ou dos defuntos, desesperados, vindo-lhes pedir socorro ou clemência.
Salvo algumas raras excepções, optaram sempre pelo silêncio, um silêncio deliberado ou imposto pela sua hierarquia, quando não era pela a acusação ou delação. Para estes, a violência dos militares revoltosos era legitima, porque não estava ao “serviço da anarquia, mas em proveito da ordem, da pátria e da religião”, como o declarou Rigoberto Doménech, arcebispo de Saragoça, a 11 de Agosto de 1936, enquanto ainda não se sabia nada sobre as proporções que o anticlericalismo ia tomar.
As perseguições anticlericais fizeram da Igreja uma vítima, mas também transmitiram desta o desprezo pelos direitos do homem e o culto da violência. Esta violência tinha conduzido ao golpe de Estado e apagado toda a luz de compreensão entre os católicos mais moderados e a República. Foi a era de intransigência mais cruel. E, ainda que as vagas de violência anticlerical tenham parado antes das perpetuadas sob o patrocínio do clero, a Igreja recusa qualquer mediação e outra saída do conflito que não esta: a rendição incondicional dos “vermelhos”, na direita linha das exigências do conjunto de generais revoltosos, Franco à cabeça. A mediação seria “absurda”, afirmava em Novembro de 1938 Leopoldo Eijo Garay, bispo da diocese de Madrid-Alcalá, porque “condescender com este liberalismo democrático (…) absolutamente marxista seria uma traição para com os mártires”.
Não podemos trair os mártires: a vitória do exército de Franco foi também incondicional e esmagadora como sonhava a Igreja católica. A violência institucionalizada e legalizada pelo novo Estado foi a origem, nos dez anos que se seguiram, de 50 000 assassinatos, que vieram somar aos 100 000 “vermelhos” mortos durante a guerra civil. Tudo isto sem um gesto da Igreja a favor do perdão e da reconciliação, bem pelo contrário: uma parte importante do clero dedicava-se, com fervor, à elaboração de relatórios, denuncias e delações que, com o espírito de “cruzada”, permitiram alimentar o quotidiano deste regime de terror.
Vai fazer setenta anos que esta guerra eclodiu e quase trinta que Franco morreu. A Igreja católica fez os “vermelhos” pagar penosamente, foi exercida uma longa e cruel vingança sobre os vencidos. Não há nada neste passado que esteja a seu favor. Chegou a altura, sem dúvida, de fazer um gesto e pedir perdão por ter dito ámen aos massacres e apoiado a ditadura. A Igreja continuará a benzer os seus “mártires da cruzada”, e terá sempre vozes vindas do passado para lhe lembrar que, ainda que seja um mártir, foi também um carrasco. Enquanto que inúmeros dos seus perseguidos já estão beatificados e que a hierarquia eclesiástica continua a propor ainda, as famílias de milhares de republicanos assassinados sem deixar rastro, sem sepultura nem lápide, continuam hoje à procura dos seus despojos. É uma das heranças da guerra civil que ainda subsiste sob forma de sofrimento. Neste ano de recordar e de comemorar, a palavra está na Igreja e no governo espanhol.
Julian Casanova é professor de história contemporânea na Universidade de Saragoça (Traduzido do francês por joãoGonçalo)
Artigo publicado originalmente no jornal El Pais, traduzido para francês por Julie Marcot e publicado no jornal Le Monde, dia 10.7.06.