sábado, janeiro 06, 2007

 

O coelho maléfico

A escrita, como o sexo, está à disposição de todos. O resultado nem sempre é forçosamente o melhor, porém, permite dar-nos uma boa ideia da criatividade dos que nos rodeiam. Eis porque falaremos aqui da Nationial Novel Writng Month (NaNoWriMo para os mais íntimos). Este evento anual assenta sobre este principio: cada participante deve escrever um romance com cerca de 50 000 palavras (à volta de 175 páginas)... num mês. Começam a 1 de Novembro e terminam a 30, o mais tardar à meia noite. Nesse espaço de tempo, podíamos ver a sua progressão no site nanowrimo.org. A edição de 2006 conseguiu reunir 80 000 participantes de todos os cantos do mundo, dos quais apenas 13 000 conseguiram chegar ao fim da competição. Não tinham nada à sua espera, senão um pouco de auto estima.

As obras escritas desta maneira são para a maior parte das pessoas de pouco interesse, porém o mais importante é que: «NaNoWriMo está inteiramente baseada no poder mágico das deadlines*, explicam os organizadores. Dá um objectivo a alguém, insere-o numa comunidade de pessoas com o mesmo objectivo, e verás milagres acontecerem» (ainda que a impressa funcione sobre este principio, não há registo de nenhuma aparição da Virgem nas redacções). Durante este mês de frenético teclar, onde cada um pode escrever uma média de 1700 palavras por dia, os «Nano Writers» podem trocar conselhos e ideias nos fóruns do site. A 19 de Novembro «Isharell» deixava o tópico: «O que estão neste momento a fazer as vossas personagens?» «Thyasse» respondia: «Estão aprisionados por uma seita satânica, algures na Escócia, mas estão tentar fugir cavando um túnel com uma cenoura pontiaguda.» O romance do «Therevolution91» seguia a mesma linha: «A minha Personagem Feminina 1 está dizer ao primo e à Personagem Feminina Principal 2 que deve destruir o coelho maléfico que é causa de todos os seus problemas.»

A 28 de Novembro, «Pre-Heated-Death» inquietava a comunidade com uma importante questão: a sua Personagem Principal Masculina acabava de se deparar com um bonita rapariga chamada, sem dúvida, futura Personagem Principal Feminina, mas não sabia o que fazer dizer ao rapaz para iniciar a conversa de maneira um pouco abrupta. Uma alma sugere este ataque: «O seu pai não seria um terrorista? É que tem ar de ser uma bomba.» Um outro Nano Writer confiava na sua destreza: não tinha escrito 20 000 palavras e já quase todas as suas personagens estavam mortas (a intriga não é nada violenta), ora optou por escrever as ultimas 30 000 palavras num monologo interior. A única solução: a ressurreição.

E assim se dá por finda uma rubrica de 500 palavras, escrita num lapso de tempo, como convém.


Edouard Launet

Artigo
publicado no jornal Libération. 21.12.06. (Proposta de tradução por João Machado-Entresede).

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* Parágrafos (em inglês no original). (N. do T.)

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sexta-feira, janeiro 05, 2007

 

Uma nova página para o livro electrónico

Será que 3 de Janeiro será uma página incontornável na história do livro digital? É pelo menos a intenção da sociedade Plastic Logic, que escolheu esta data para anunciar a construção da primeira fábrica de papel electrónico em grande escala.

Mais concretamente, consiste em fabricar módulos de visualização, isto é, folhas flexíveis de matriz activa, utilizadas na gama de produtos de leitura electrónica «Take anyhere, read anyhere». Desenvolvido a partir de um processo único da Plastic Logic, esta folhas querem-se «finas, leves e sólidas» e sobretudo parecidas com o papel, seu principal rival. Na prática, o utilizador, através de uma ligação sem fios e uma bateria de longa duração, poderá fazer o download de um livro ou de um jornal, não importa onde ou quando.

Sediada em Dresde, Alemanha, a fábrica deverá iniciar a sua produção em 2008, com uma capacidade inicial de um milhão de unidades por ano. A sua construção é possível graças ao financiamento de 100 milhões de dólares angariados pela Plastic Logic, nomeadamente junto da Oak Investment Partners e da Tudor Investment.

Todos os investidores felicitam-se pela sua participação no projecto e dizem-se confiantes, como relata Bandel Carano da Oak Investment Partners para quem a «Plastic Logic desenvolveu uma tecnologia de ponta que vai transformar o comportamento das pessoas com os media». As previsões de produção são igualmente optimistas com 41.6 milhões de unidade previstas para 2010 e um mercado de 30 mil milhões de dólares até 2015.

Se por um lado os responsáveis da Plastic Logic apostam no seu projecto, por outro reconhecem que actualmente a leitura em suportes digitais (computador portátil, telemóvel, PDA,...) não convenceu os utilizadores apesar da generalização dos mesmos e de uma maior consciencialização dos impactos ecológicos que o papel acarreta. Com efeito, se há uns anos, o livro electrónico era objecto de numerosos debates e de múltiplos protótipos, até agora nenhum teve êxito. Agora, que um primeiro protótipo foi apresentado, resta-nos esperar por 2008 para a análise final do produto e comparar as suas vantagens económicas (custo, sistema de compra de conteúdos,...).


Astrid Girardeau

Artigo publicado em Ecrans. 4.01.07. (Proposta de tradução por João Machado-Entresede).

quinta-feira, janeiro 04, 2007

 

Jean-Marie Le Pen considera que está no "centro direita" do tabuleiro político de xadrez

Um “homem de centro direita”. É assim que Jean-Marie Le Pen se caracteriza numa entrevista ao Paris Match, publicada quinta-feira. “Diz-se que Jean-Marie Le Pen é extremista, que é de extrema direita para desqualificar a minha mensagem. É falso, sou um homem de centro direita”, declara o presidente da Frente Nacional.

Recorda que pertencia em 1958 ao Centre National des Indépendants et Paysans (CNIP), de Antoine Pinay, e explica: “Era de centro direita. Defendia os mesmos ideias que agora.” “Não fui eu que me tornei extremista de direita, mas sim o corpo político francês que virou à esquerda”, prossegue Le Pen, que se esforça há muitos anos para “normalizar” a sua imagem.

“SOU BASTANTE GAULLISTA”

O presidente da FN afirma, além disso, estar próximo do general de Gaulle, apesar divergir em dois pontos. “Deveria ter feito a reconciliação dos Franceses depois da guerra: Pétain era o escudo, e ele a espada. E depois, estivemos em desacordo sobre a questão da Algéria francesa, mais sobre método que a essência.” “Mas de resto, sobre uma certa ideia da França, da sua especificidade, não discordo com ele. Nas sua reflexões patrióticas, sou bastante gaullista. O ultimo, talvez”, assegura.

À pergunta “Poderia governar?” Jean-Marie Le Pen responde: “Porque não!” “Há um sem número de nomes de altos funcionários e de personalidades que, sob o meu conselho, se mantêm em relativa obscuridade, que estão disponíveis para governar comigo”, explica o candidato da frentista, presente na segunda volta das eleições presidenciais em 2002.

Se fosse eleito, o dirigente da FN começaria “por uma auditoria geral sobre a situação francesa porque parece-me que a maior parte dos dados fundamentais não são conhecidos” e prepararia o advento de uma “república referendária” com o intuito de “aproximar” o povo francês das suas decisões. Em contrapartida, afirma que não tomaria “nenhuma” medida discriminatória se chegasse ao Elíseo.

A quatro meses das presidenciais, Jean-Marie Le Pen, “não descarta a hipótese” de uma nova candidatura de Jacques Chirac. Entre Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy, explica que escolheria, se não participasse, o segundo no caso de haver uma segunda volta. Por outro lado, recusa pronunciar-se entre o candidato da UMP e Ségolène Royal. “Isso dependerá de circunstancias e de compromissos a que se proponham sobre um certo numero de questões”, explica, julgando os dois candidatos “excessivamente mediatizados”.


Artigo publicado no jornal Le Monde. 4.01.07.
(Proposta de tradução por João Machado-Entresede).

quarta-feira, janeiro 03, 2007

 

Os trabalhadores do «Libération» aceitam a mudança de estatuto

Os trabalhadores do Libération aprovaram a mudança de estatuto da sociedade, condição sine quam non colocada pelo accionista principal, afim de levar à recapitalização do jornal à beira da falência, numa votação que teve lugar quarta-feira, 3 de janeiro.

Para que a votação fosse válida, era necessário obter uma maioria em dois dos três departamentos, dos quais o dos redactores. Uma primeira votação, a 19 de dezembro, não permitiu que fosse alcançada a maioria.

No departamento dos redactores, 128 pessoas votaram a favor da alteração do estatuto, 61 contra e 12 em branco ou nulo, o sim alcançou 68% do dos votos. No departamento dos fabricantes, 14 pessoas votaram sim e 14 contra. No departamento dos administrativos, 26 pessoas votaram sim e 17 não. O sim alcançou 60% dos votos.

RECAPITALIZAÇÃO ATÉ CERCA DE 15 MILHÕES DE EUROS

A aprovação pelos trabalhadores da mudança de estatuto do Libération leva a transformações no quotidiano do jornal, começando pela passagem a sociedade anónima, dotada de um conselho fiscal e directório. Esta mudança leva igualmente ao abandono por parte Sociedade civil do pessoal do Libération (SCPL), que representa os acionistas-trabalhadores, do direito de veto do qual dispunham actualmente sobre as grandes decisões relacionadas com o jornal: aumento do capital, filiação e nomeação do Presidente.

Esta renúncia foi apresentada pelo accionista principal do jornal, Edouard de Rothschild (38.8% do capital), como condição sine qua non para a injecção de capital no jornal e à captação de novos accionistas. A identidade destes últimos deverá ser revelada quinta ou sexta feira.

O plano de rectificação do jornal, que acusou uma perda estimada em cerca de 12 milhões de euros em 2006, prevê a sua recapitalização até 15 milhões de euros.

Libération.fr.

Artigo publicado no jornal Libération. 3.01.07. (Proposta de tradução por João Machado-Entresede)


 

Em directo do ministério da Crise da habitação

Três associações, artistas e oito famílias instalaram-se alguns dias antes da passagem de ano no número 24 da Rue de la Banque, no segundo distrito de Paris. A 11 de janeiro, este edifício será a sede do "Ministério da Crise da Habitação". Blogue dos ocupantes: «En direct du ministère de la Crise du logement

Artigo
do jornal Libération. 3.01.07. (Proposta de tradução por João Machado-Entresede)

 

O direito à habitação oponível apresentado em Conselho de Ministros a 17 de janeiro

Um projecto lei instituindo o direito à habitação oponível será apresentado a 17 de janeiro em Conselho de Ministros, anunciou, quarta-feira, 3 de janeiro, o primeiro ministro. Este diploma dividir-se-á em duas fases. No final de 2008, aplicar-se-á às pessoas mais carenciadas (sem abrigo, trabalhadores pobres, mulheres sozinhas com crianças). “A segunda etapa talvez seja fixada a 1 de janeiro de 2012: o direito à habitação oponível abrangerá então todas as pessoas ou todas as famílias alojadas em habitações insalubres ou indignas”, explicou Dominique de Villepin, numa conferencia de imprensa.

O projecto lei exige do Estado a garantia jurídica do respeito do direito à habitação. No caso de falta de uma habitação digna, será possível um recurso jurídico junto de uma instancia publica. Esta será obrigada a encontrar uma solução. O respeito do direito oponível à habitação será garantido pelo Estado, frisou Dominique de Villepin, acrescentando que o “Estado poderá naturalmente delegar os encargos deste direito às autarquias locais.”

O direito à habitação é reconhecido como direito social desde 1946 em França, mas não é oponível, contrariamente ao direito à educação e à saúde. A reforma proposta pelos governantes “fará da França um dos países mais avançados em matéria dos direitos sociais”, assegura o chefe do governo. Igualmente presente, o ministro da Coesão Social, Jean-Louis Borloo, precisou que o objectivo não era “criar a prazo contenciosos, mas fazer mover toda a República.”

Dominique de Villepin entregou a Xavier Emmanuelli, presidente do Alto Comité para a habitação de pessoas desfavorecidas, o projecto do texto e pediu-lhe uma opinião “dentro de oito dias”.

Uma vigília de associações, reagrupadas numa plataforma, reivindicavam o direito à habitação há muitos anos. Apenas a Escócia, em toda a Europa, adoptou até agora uma lei deste género.

Le Monde.fr com AFP


Artigo publicado no jornal Le Monde - 3.01.07. (Proposta de tradução por João Machado-Entresede).

terça-feira, janeiro 02, 2007

 

Na UMP, ou Sarkozy ou em Branco

De suspense há muito pouco. Na UMP, os aderentes vão eleger um e único candidato às presidenciais, naturalmente Nicolas Sarkozy. Desde terça-feira de manhã, os membros do partido começaram a votar por internet para o único candidato em jogo, num processo que terminará a 14 de janeiro.

Os militantes nem têm a possibilidade de votar «não», tendo apenas que escolher entre um boletim favorável ou em branco. A única incógnita desta eleição será, portanto, a taxa de participação e a percentagem de votos em branco.

Isto é, as eleições da UMP não convencem. Em tempos, pensámos que a ministra da Defesa, Michèle Alliot-Marie, ia desafiar Sarkozy. Mas não. Renunciou à apresentação da sua candidatura, bem como os outros potenciais candidatos da UMP. Face a esta situação, muitos interrogam-se quanto ao interesse de manter esta consulta. «Quando se avança com um processo eleitoral, não é porque há apenas um candidato», declarou terça-feira Valérie Pécresse, o porta voz da UMP. «Nós temos desde 31 de Dezembro 33.6838 aderente, que começaram a votar desde desta manhã, acrescentou. Os votos em branco serão evidentemente contabilizados (...). Os que não querem votar Nicolas Sarkozy não são obrigados a faze-lo.»

Para o presidente da UMP, é uma maneira de relançar a sua campanha na Internet, que esteve um pouco apagada nestas últimas semanas. Neste inicio de ano, o ministro do Interior rivalizou com Ségolène Royal na apresentação dos seus votos por vídeo. E terça-feira, na UMP, opunha-se o estilo «amador falso» da candidata socialista ao estilo «cuidado» do presidente da UMP.


Artigo publicado no jornal Libération - 2.01.07. (Proposta de tradução por João Machado-Entresede)

terça-feira, outubro 03, 2006

 

'Caso empolado'

Em Novembro do ano passado, cinco maduros dirigiram-se a Den Helder, uma pequena vila atlântica do Norte da Holanda. Queriam verificar denúncias sobre exploração e maus-tratos aplicados a trabalhadores portugueses ao serviço de uma agência de trabalho temporário, a The Five.

Os maduros eram cinco: dois jornalistas, o conselheiro da comunidade portuguesa na Holanda, a responsável social da Embaixada e eu próprio. O que apurámos foi relatado pela RTP. Ao longo de meses, continuámos a falar com portugueses que tinham passado por Den Helder. Alguns tiveram coragem para dar a cara e as autoridades holandesas abriram uma investigação.

Realizaram-se, entretanto, dois encontros de trabalhadores temporários portugueses, em Roterdão e Ardenhout, com uma centena de pessoas cada. Outros abusos vieram a lume. Posso, sem exagero, falar de uma comunidade em revolta. Indignada.

Infelizmente, nos serviços diplomáticos, a voz corrente era a de que «a montanha parira um rato». Tanto seria o exagero, que até a conselheira social da Embaixada foi exonerada. Quanto ao inspector-geral do trabalho, Paulo Morgado, disse há dias na RTP-Internacional que «o caso da Holanda foi empolado».

Pois bem, esta semana chegou a resposta, assinada pelo secretário de Estado holandês dos Assuntos Sociais e do Emprego: «Foi estabelecido que a agência The Five pagou abaixo da lei a numerosos trabalhadores portugueses», que lhes deve pagar o que esteja em falta e que as vítimas «podem iniciar um caso civil» contra a firma. Não é muito. E faltam ainda as conclusões de uma segunda investigação, esta de ordem criminal. Mas é um começo.

A vida de jornalistas, de profissionais diplomáticos conscientes e de activistas sociais ante os buracos negros da nossa modernidade, é tramada. Procuram ser úteis e raramente vêem resultados. Persistem, insistem e são vistos como chatos de serviço, quando não como arrivistas. A vida de parlamentar europeu também deixa amargos de boca. Neste caso, foi diferente, valeu a pena. Não sucede muitas vezes, mas acontece. Só é preciso procurar.

Tanta razão

José Sócrates acusou Marques Mendes de irresponsabilidade, a propósito da proposta de criação de um sistema misto de Segurança Social. Invocando um estudo nunca publicado pedido pelo anterior Governo de direita, explicou que as simulações sobre esse modelo agravariam a dívida pública do país em muitos mil milhões de euros nas próximas duas ou três décadas. É óbvio. Alguém terá de pagar o que os salários mais altos deixam de descontar. Em contraste, Marques Mendes acusou o primeiro de apenas querer «remendar» o sistema. Também tem razão...

E esta, hem?

Tem o insuspeito Fórum Económico Mundial um ranking sobre a competitividade dos países. Portugal perdeu umas posições. Era de esperar, dirá o leitor pessimista. Talvez. Sucede que a quebra se deve ao comportamento do sector privado e não do sector público. Este melhora na generalidade dos índices. Quem perde é o mundo empresarial. Em todos os itens relevantes, da investigação à eficácia das administrações. O nosso Estado é deficiente, pois é. Mas o drama nacional é a burguesia que temos. Ignorante, dependente e nova-rica.

Miguel Portas


Artigo opinião do site BE Global.

domingo, setembro 24, 2006

 

Uma verdade conveniente

Não mergulhava tão profundamente no PIB desde que voei com José Sócrates para Angola num avião cheio de empresários. Esta é a primeira e óbvia impressão que qualquer jornalista ou curioso teve ontem ao entrar no Convento do Beato para a segunda Convenção do Compromisso Portugal. Obviamente, esta sensação não tem nenhum valor em si mesma. Quem for a um casamento de uma filha de um banqueiro ou a um ‘cocktail’ de embaixada vive exactamente a mesma experiência, com a vantagem de comer e beber decentemente.

Mas o Compromisso Portugal ”versão 2006” ganhou claramente face ao desfile de 2004. Talvez tenha tido menos ‘hype’ por não ser uma novidade, mas ganhou substancialmente com o momento político. Em 2004, o Compromisso era facilmente visto como um cavalo de Tróia de propostas que o governo de Durão Barroso não arriscava fazer e que, assim, tinham um primeiro teste na opinião pública e com a vantagem de ter pessoas a dar a cara por elas. Em abono da verdade, o movimento não era isso mas deu muito jeito ao governo, que fugiu como o Diabo da cruz de qualquer reforma com esse nome, com excepção de Manuela Ferreira Leite que se limitou a fechar a torneira, arte em que é mestra sem que daí venham grandes vantagens ao mundo, ao PSD ou a ela própria.

Desta vez também tivemos as leituras políticas óbvias. Cavaco recebeu o movimento em tempo recorde, porque fazia sentido e porque o seu ”Mourinho” (Alexandre Relvas) é um dos cabeças de cartaz. Sócrates, com cálculo e método, adiou a audiência porque se quer livrar da fama de liberal e porque já tem tanto capital na Banca e no mundo das finanças que um pouco de desprezo público até lhe fica bem, sobretudo quando o Congresso do PS se aproxima...

Para além do aligeirar da carga política foi óbvia uma maior consistência de propostas, sobretudo na Segurança Social, a única que pude ouvir e ler com bastante atenção. É uma proposta que mantém uma essência liberal mas que se aproxima da realidade, ou seja, do país, do sistema político e da nossa matriz constitucional. Em vez da tão falada privatização, estamos perante uma proposta de capitalização que tem, no mínimo, que ser discutida. Merece-o claramente, porque tem números, factos e projecções e não está ferida por nenhum preconceito ideológico. O PSD devia olhar para perceber como se faz uma proposta. PS, Bloco e PCP deviam, pelo menos, parar para a ler.

É uma área em que tenho muitas dúvidas e uma única certeza: o futuro não será risonho. Vamos todos (ou quase) pagar para receber menos. O tema é demasiado sério para não ser discutido. Não é por acaso que o Compromisso foi ”recrutar” para esta proposta Carlos Pereira da Silva, uma das pessoas que mais sabe de segurança social em Portugal, que trabalhou com Ferro Rodrigues anos e anos e que nunca ninguém imaginou ver no Convento do Beato. É óbvio que ser ele a falar é substancialmente diferente, do ponto de vista comunicacional, do que deixar todo o palco para os empresários do costume. Duvido que o Governo leve a sério a proposta e Vieira da Silva tem argumentos para a rechaçar. Mas muito do que agora se ouve é de uma verdade absoluta. Uma verdade conveniente a quem quer debater o País com um mínimo de seriedade.

P.S. - Só não percebi porque é que continuam a fazer ”powerpoints” ilegíveis. Para usar a linguagem do ”Compromisso”, são ineficientes, confusos, redundantes e não criam riqueza. Só provocam estranheza e alavancam a miopia.


Ricardo Costa

Artigo-opinião publicado no jornal Diário Económico.

sexta-feira, setembro 22, 2006

 

O papa Bento XVI e o Islão

O papa Bento XVI, mais teólogo que politico, teve, terça-feira, 12 de Setembro em Ratisbonne, Alemanha, um discurso politicamente incorrecto sobre a tentação da violência no Islão. Cinco anos depois do 11 de Setembro, face às crescentes vagas de islamofobia, esperaríamos do papa um discurso mais comedido sobre a religião muçulmana e uma recusa da amálgama entre Islão e islamismo.

A obsessão deste papa alemão é o desmoronamento da fé e da memória das raízes cristãs numa Europa “surda” a Deus. Uma Europa secularizada, que se enfraquece face a um Islão classificado de concorrente. Aos olhos de Bento XVI, a fé sem razão é um campo aberto, e a razão é o melhor antídoto contra a “doença mortal” de todas as religiões: o fundamentalismo. E isto porque o Islão não poderia nunca fazer esta auto-critica, pois estaria pouco preparado para a modernidade e tão permeável à violência fanática.

O argumento é capcioso se quisermos admitir que, de Al-Tabari a Averroès, e aos reformistas do século XIX, a história do pensamento islâmico não esteve ligado à razão, palavra citada quarenta e cinco vezes no Corão. Os propósitos do papa chocaram, portanto, o mundo muçulmano, que, depois de quarenta anos de diálogo aberto pelo concilio do Vaticano II (1962-1965), teme a reavaliação – em baixa – do relatório da Igreja católica com o Islão.

O que nem é completamento verdadeiro, nem completamento falso. Desde da sua eleição, Bento XVI reafirmou o seu desejo de diálogo com o mundo muçulmano. A Igreja católica não pode fugir a um encontro que contribui para a paz. Não mais que o cristianismo, o Islão não é um muro. Tanto quanto o Islão, o cristianismo teve na sua história a sua cota parte de violência.

Mas Bento XVI não se propõe dialogar à maneira de João Paulo II, campeão das assembleias de oração como em Assise, Itália. Privilegia os impasses: ausência de interlocutores representativos, diálogo teológico impossível, perpetuação de praticas que nenhuma reflexão critica vem contradizer – apostasia e blasfémia condenados à morte, ou proibição de todos os cultos minoritários em alguns países muçulmanos – Arábia Saudita, por exemplo. Além disso, o chefe da Igreja católica não pode ficar sem reacção face aos cristãos em terras do Islão: na Turquia, três padres foram mortos desde da publicação das caricaturas de Maomé, enquanto no Paquistão e na Nigéria queima-se igrejas.

Tantas são as realidades e as violências que os responsáveis do Islão não podem nem ignorar nem esconder. Quanto ao diálogo entre religiões, seria evidentemente mais produtivo se os responsáveis muçulmanos mais moderados não deixassem o campo aberto aos islamitas fundamentalistas. Do lado de lá, também, é necessária uma explicação.

Editorial do jornal Le Monde (traduzido por: joão Entresede).

Artigo publicado na edição do dia 16.09.06.

 

Julie Jacobson

quinta-feira, setembro 21, 2006

 

Ratzinger em busca de Bento XVI

Tenho sérias dúvidas sobre as consequências positivas, a prazo, da sucessão de explicações desculpabilizadoras, por parte do Vaticano e do próprio Papa, a propósito do já célebre discurso proferido numa universidade alemã.

Desde logo, não há, na substância e no enquadramento do texto da polémica, motivo suficiente para a evidência pública de tanta mágoa por parte de Roma. A explicação que foi fornecida num primeiro tempo teria chegado para dissipar equívocos, conservando, por outro lado, intacta a margem de manobra do Vaticano no âmbito do desejável diálogo inter-religioso. A multiplicação de palavras e iniciativas "conciliatórias" a que se assistiu nos últimos dias debilita o edifício doutrinário da comunidade católica e fragiliza a imagem pública de um Papa que ainda busca o registo adequado de exercício do seu magistério.

As reacções da famigerada "rua árabe" foram, como é óbvio, incentivadas pela coligação de interesses entre os responsáveis fundamentalistas islâmicos e os tutelares dos poderes políticos autoritários de algumas das teocracias mais retrógradas do planeta. Vale sempre a pena recordar que se trata, na maioria dos casos, de países onde a distribuição da riqueza é de uma desigualdade gritante e a liberdade e o respeito pelos direitos humanos são uma ficção. Portanto, a mobilização popular com base na religião é uma ferramenta de dissuasão de eventuais contestações socio-económicas que possam pôr em risco a proveitosa sobrevivência dos interesses instalados.

Dito isto, não se deve, mesmo assim, simplificar o "estado do mundo" em matéria de potencial de conflito religioso alargado. As palavras de Ratzinger acabaram por tornar a vida ainda mais difícil aos chamados "muçulmanos moderados", um grupo pouco significativo em número e influência, mas importante numa perspectiva de futuro.

Ainda há dias, numa das suas cada vez mais raras intervenções públicas, Samuel Huntington sublinhava a relevância estratégica de um apoio inteligente, por parte do Ocidente, aos movimentos que, nesses países, defendem os ideais democráticos de uma sociedade laica. Manifestando-se contra a terapêutica anglo-americana aplicada no Iraque, Huntington não acredita na viabilidade de uma "democracia" implantada à força. Para o professor de Havard, será necessário esperar que esses grupos, hoje minoritários, ganhem apoio popular suficiente para a sobrevivência de um regime baseado num estado de direito democrático.

Há, neste processo, uma "janela" de oportunidade e acção para as democracias ocidentais e também, naturalmente, para os responsáveis máximos de uma religião, como a católica, que encontrou já o seu justo lugar nas sociedades laicas mais desenvolvidas.

É por isso que Ratzinger terá, em alguma medida, de sacrificar o seu fascínio pela História das Ideias (oportunamente recordado nestas páginas por José Medeiros Ferreira) à sabedoria milenar herdada pelas vestes de Bento XVI.

Além de tudo o mais, há, no curto prazo, a questão turca, onde se joga a capacidade de a Europa integrar uma das raras democracias de população maioritariamente islâmica - e, por essa via, contribuir para viabilizar a compatibilidade do islão com o laicismo. Essa será, assim se espera, uma das respostas mais inteligentes e eficazes aos devaneios fundamentalistas.

A Bento XVI pede-se que, pelo menos, guarde uma reserva prudente sobre a oposição que o cardeal Ratzinger em tempos manifestou relativamente à adesão da Turquia à União Europeia.

Nota

O primeiro número do semanário Sol confirmou a justeza da reacção preventiva por parte do Expresso. A alegada "ligeireza" de alguns dos conteúdos do novo jornal são pretexto fraco para subestimar uma publicação que revelou potencial de futuro. Foi só, é certo, um primeiro número e o Sol terá de evidenciar fôlego para, no mínimo, consolidar patamares razoáveis (acima dos 50 mil exemplares) de venda durante a ofensiva demolidora do marketing do Expresso. Por isso, prognósticos mais seguros, só lá para o Natal...

Mário Bettencourt Resendes

Artigo-opinião do jornal Diário de Notícias.


 

Bloco comenta as propostas do Compromisso Portugal

Comunicado de imprensa

Alegre irresponsabilidade a prometer o paraíso em cada esquina

O Compromisso Portugal apresentou hoje, com grande espavento, as suas propostas para o país.

O Bloco regista os seguintes comentários:

1. O Bloco leva a sério as propostas do Compromisso Portugal e discute-as em conformidade. Um dos promotores do Compromisso é o director da campanha presidencial de Cavaco Silva, e entre os seus porta-vozes encontram-se hoje alguns dos principais empresários bem como políticos da direita e do PS (nomeadamente, ex-governantes de Guterres e de Sócrates). Estes homens são dos mais poderosos do país, e têm tido todas as oportunidades de fazer valer as suas propostas. O seu programa actual é o programa da direita social. A esquerda que se bate contra a decadência e a crise social deve apresentar uma alternativa contra este programa.

2. Registamos também as propostas demagógicas e irresponsáveis: cortar 200 mil funcionários públicos é uma proposta sem qualquer fundamentação ou estudo prévio. Onde vão ser retirados estes funcionários: nas autarquias? Na saúde? Na educação? Noutros serviços fundamentais? Na administração dos ministérios? A proposta tem unicamente um fundamento: um preconceito ideológico contra os serviços públicos. O Compromisso levanta aliás o véu ao indicar que seria na saúde e na educação que seriam despedidos mais funcionários públicos, porque sugere o aumento do ensino e da saúde privados com a anterior destruição desses sectores públicos. Ora, acontece que os hospitais privados e o ensino privado são, em geral, de pior qualidade do que os públicos; são mais caros; dependem igualmente do Orçamento de Estado; e não garantem a cobertura universal, porque têm como razão o lucro e não as pessoas.

3. O Compromisso quer privatizar. Mas só quer privatizar monopólios: é sempre negócio garantido.

4. Mas é na Segurança Social que as propostas do Compromisso são mais graves - e são as que foram preparadas por ex-governantes socialistas. A criação de um desconto obrigatório para um fundo de pensões com o encerramento da actual Segurança Social é errada porque:

a) Os fundos privados têm, em todos os anos desde 2000, pior rentabilidade do que o fundo público. Se a segurança social for entregue às seguradoras, os trabalhadores ficam desde logo a perder. Só por preconceito ideológico absurdo é que o Compromisso quer negar este facto.

b) A ideia de pagar com dívida pública o buraco gigantesco que se criaria na segurança social é irrealista: Portugal já tem um nível de dívida pública acima dos 60% permitidos pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento, e com a proposta do Compromisso passaria para 160% na próxima geração, o que é manifestamente impossível - nunca seria aceite pela União, aumentaria dramaticamente os juros de referência.

c) O país escolheu um sistema público que tem contas individuais, que tem capitalização com regras prudenciais e que é eficiente - mais do que os privados. Destruir estes sistema seria um atentado contra a democracia.

Comunicado de imprensa do Bloco de Esquerda.

sábado, setembro 16, 2006

 

Afeganistão: missão não comprida

Cinco anos depois da queda dos taliban e da sua substituição em Cabul por um regime classificado de pró-ocidental e sempre sob pressão, a pergunta assombra todos os afegãos: para onde vamos nós? “Quando regressei, em Novembro de 2001, estava eufórica, recorda uma afegã regressada do estrangeiro. Hoje, não sei o que se vai passar e, como toda a gente, tenho medo que o país não se reconstrua nunca.

Os progressos realizados parecem cada dia mais frágeis e irrisórios face à crescente insegurança politica, económica e criminal.

Se a insegurança é mais visível nas províncias do Sul, onde os combates, os bombardeamentos e as incursões dos exércitos são o pão-nosso de cada dia dos aldeões, tal facto é contestado numa população que não compreende como “a maior potência do mundo” não conseguiu pôr o país a andar sobre os carris.

Na fachada, o renascimento das instituições, com um presidente e um Parlamento eleitos por sufrágio universal, uma Constituição, uma nova moeda, um novo hino nacional, uma nova bandeira, um exército e uma polícia em formação, constitui um avanço impressionante. Mas, eleito há apenas dois anos, o presidente Hamid Karzai não impressiona ninguém. Mesmo no seu feudo de Kandahar, que o elegeu por maioria de 80%, o desencantamento é total. “Se ele se voltar candidatar, não votarei outra vez nele”, confessa Ahmad Wali, um jovem professor que teve que deixar a sua aldeia na sequência das ameaças dos taliban. “Lamento o meu voto. Prometeu tudo, mas nada fez”, acrescenta Abdul Wali, um agricultor.

A própria comunidade internacional também perde as ilusões, face a um presidente “mais oriental do que julgámos”, como disse um diplomata, que acrescenta que a sua politica permanente de “acordos” tende frequentemente a estender-se ao “comprometimento”. Resultado: muito afegãos consideram hoje a democracia como um luxo desnecessário para o seu país. “Não é a democracia, é a anarquia”, quem reina, diz um advogado. Do que nós precisamos, acrescenta, é de um homem forte, que tome decisões e as faça aplicar. A Administração Karzai, conclui, falhou totalmente ao tentar ganhar a confiança da população.”

Na melhor das hipóteses, o governo é considerado pelos afegãos como inexistente, pior como um grupo de mafiosos, corruptos e sem escrúpulos. “Nunca, na história do Afeganistão, a corrupção atingiu tais níveis, do mais alto ao mais baixo”, admite um ministro. “Os professores eram os últimos funcionários honestos, afirma um professor universitário, mas acabou. Hoje, os meus filhos têm que comprar um cartão de telefone ao professor para que este aceite corrigir os seus trabalhos de casa.”

Formado pela comunidade internacional, o exército nacional, que conta aproximadamente 30 000 homens, está longe de ser consensual, mesmo que beneficie de uma imagem muito mais favorável que a da policia. Este exército, do qual a maior parte combate ao lado da NATO ou da coligação dirigida pelos Estados Unidos, permanece, na maior parte das vezes, incapaz de operar sozinho. Não tem meios logísticos, pouco material de comunicação e a taxa de desertores ou de não renovação dos contratos é tão elevada que estão longe de atingir os 70 000 homens exigidos pelos Estado Unidos.

Mal treinada, mal equipada, desmotivada, a policia está minada pela corrupção. Em muitas cidades, os polícias são ainda os milicianos, sobretudo leais ao seu comandante, cujo objectivo não é forçosamente a aplicação da lei. O Afeganistão é um estado sem lei onde, por exemplo, as companhias privadas de segurança, que empregam milhares de homens armados, actuam sem mesmo estar credenciadas pelo ministério do interior, onde as grandes limousines sem matricula e com vidros pretos, beneficiam de toda a disponibilidade da policia, onde os estrangeiros inutilizam vias públicas inteiras, sob o pretexto da segurança.

Neste contexto, a justiça, cuja reforma é ainda hesitante, resume-se à lei do mais forte. Os tribunais especiais com julgamentos em curso de elevados custos que deviam atacar o problema da droga por cima, isto é, tornando-se pesados ao traficantes ao invés dos pequenos agricultores, têm até agora 600 dossiês, que se referem essencialmente aos motoristas dos comboios de ópio.

Intocáveis porque protegidos até nas altas esferas do Estado, os grandes senhores da droga prosperam. Este ano, o Afeganistão bate todos os recordes de produção de papoila com uma colheita de 6 100 toneladas, ou seja, depois de tratada, enviarão 600 toneladas de heroína potencial. Entre a falta de vontade politica e tendo em conta a corrupção geral, os 2 mil milhões de dólares gastos pela comunidade internacional para lutar contra este flagelo, que ameaça mesmo a existência do país, de nada serviram. Hoje, o Afeganistão é sem dúvida o único narco-Estado para a comunidade internacional…

Ainda que somente 6% dos afegãos disponha de electricidade, que a maioria da população sofra de subnutrição, que só 40% das crianças são vacinadas, que um mulher morra em cada meia hora com complicações ligadas ao parto, muitos se interrogam sobre a eficácia dos 15 mil milhões de dólares já derramados no país.

Certamente, escolas e clínicas foram construídas, estradas e construções públicas restauradas, canais de irrigação limpos, mas muito se fez na desordem, sem coordenação, sem consideração pelas necessidades reais, sem controlo de qualidade. Num relatório devastador sobre as “fraquezas da reconstrução” realizado pela Corpwatch, uma organização não governamental (ONG) que investiga a utilização da ajuda, Fariba Nawa sublinha os exemplos de reconstruções defeituosas, da delapidação ou má gestão do dinheiro.

Sobre um programa de 119 milhões de dólares atribuído à empresa americana Chemonics International Inc. para cultivos alternativos à droga, somente 4 milhões foram gastos, afirma Fariba Nawa. Os especialistas não sabem onde ir, não conhecem as comunidades que supostamente deviam ajudar, não se coordenam com outras agências ou governo”, diz, sublinhando “as fraquezas da supervisão dos projectos”. Por razões de segurança, os doadores não estão presentes nos locais dos projectos, não sabem como estes são executados, ou mesmo se o são…

Falta coordenação no seio da comunidade internacional como entre esta e o governo medronheiro por vezes absurdo. Duas organizações internacionais aperceberam-se recentemente, por exemplo, que pagavam cada uma a um conselheiro de presidente Karzai um salário mensal de 20 000 dólares. Um professor que arrisca a sua vida nas províncias do Sul recebe quinhentas vezes menos: cerca de 40 dólares por mês! Os salários de certos especialistas internacionais e certos Afegãos regressados do estrangeiro alimentam o ressentimento e as frustrações da maioria da população que tem que lutar para sobreviver. “O Afeganistão sempre foi pobre, mas antes, em meses, não víamos esta riqueza arrogante que se instala hoje em Cabul e nas grandes cidades”, desola-se um antigo ministro.

O dinheiro da comunidade internacional foi para os bolsos dos oficiais, o povo está enraivecido, e é por isto que ouvimos as sirenes dos talibans”, explica Wali Mohammad, um agricultor de Kandahar. Esta visão das coisas não abrange sem dúvida todas as razões do regresso em força dos taliban, mas estes beneficiam largamente da frustração geral. A insegurança crescente no país fez soar o alarme no seio de uma comunidade internacional que prefere demasiadas vezes esconder-se das realidades por medo do que seria necessário para lhe fazer face.

Índice patente da deterioração da situação, o número de soldados estrangeiros mobilizados no país é hoje o triplo do que era em 2002 e 2003. A NATO, surpreendida “pela intensidade dos combates” da semana passada, pede de novo reforços contando já com 21 000 homens oriundos de 37 nações. A coligação comandada pelo Estados Unidos conta por seu torno cerca de 20 000 homens. A 8 de Setembro, as perdas militares estrangeiras registadas este ano – 149 mortos – excedem já as de 2005 – 130 –, as quais representavam o dobro das de 2004.

Os talibans, particularmente activos nas províncias do Sul, e seus aliados, fies do antigo primeiro ministro Gulbuddin Hekmatyar ou da Al-Qaeda, mais presente no leste do Afeganistão, multiplicam as suas operações, e nomeadamente os ataques suicidas, cujo número aumentou um terço. De acordo com os números da NATO, mais de 130 pessoas foram mortas este ano em atentados suicidas, dos quais 84% são civis.

A maior parte dos atentados deste tipo teve lugar em Kandahar ou nos arredores. Longe, porém, da propaganda taliban, muitos em Kandahar acusam os estrangeiros de serem os causadores das mortes de civis. “As tropas patrulham a cidade, há um ataque, e somos nós que somos mortos”, afirma Abdul Sattar, cujo irmão foi morto numa operação suicida que fez 21 mortos no bazar de Panjwayi, a 3 de Agosto.

Antiga “capital” dos talibans, Kandahar vive doravante no medo. “Quando mando os meus filhos para a escola de manhã, tenho medo até que voltem”, confessa o director duma ONG afegã. Os incidentes são quotidianos nesta cidade. Os taliban circulam sem problema. “Tenho medo de ensinar abertamente”, cofia Ahmad Wali, que reúne hoje os seus alunos em casa. O sucesso do “novo Afeganistão” passa pelo regresso à escola de cerca de 5 milhões de crianças, das quais 1,6 milhões são raparigas, o problema está nas províncias do Sul. Mais de 300 escolas foram destruídas pelos insurrectos e a maior parte das que resistiram não funcionam.

O ano passado, éramos 55 na minha turma”, conta Ali Ahmad, 16 anos, que estuda numa escola situada nas traseiras do estado-maior das forças armadas da polícia de Kandahar. “Depois da explosão em frente à sede da polícia há oito meses, não somos mais do que 40. Há três meses, uma carta de ameaças foi deixada durante a noite à porta: 15 outros alunos partiram. Chegam novas cartas neste momento, portanto não sei bem quantos seremos este ano”.

De acordo com numerosos testemunhos de aldeões do Sul, os talibans circulam livremente em todos os distritos das províncias. Consequência da sua propaganda: muitos exigem a partida dos militares estrangeiros. "As pessoas estão revoltadas contra as tropas estrangeiras, porque têm muito poder, mas nada fazem por nós, e sentem-se traídos”, afirma um responsável de segurança. “O governo de Karzai, do qual são aliados, não tem peso nas grandes cidades. Nos distritos provincianos, não tem nenhum apoio, e as pessoas tornam-se apoiantes dos talibans”, reconhece.

Se a situação na maioria norte do Afeganistão é melhor, a manutenção dos “senhores da guerra” que resolvem os seus problemas a tiro continua a fazer pesar a insegurança sobre uma grande parte da população. A criminalidade aumenta consideravelmente e a ANSO (uma ONG que se ocupa da segurança dos seus homólogos) notava recentemente para a região de Cabul “um crescimento alarmante do número de crimes”.

Apesar do seu desapontamento e incompreensão, os Afegãos, na sua grande maioria, não perderam totalmente a esperança. Alguns reconhecem pequenos progressos na vida quotidiana – o telemóvel, cinco canais de televisão, jornais, a presença de estrangeiros, fonte de dificuldades mas igualmente de empregos, demonstra de facto que o país deixou de ser um pária. As mulheres com assento no Parlamento, aquelas que podem trabalhar e estudar, são as que estão mais apreensivas. O restabelecimento de um departamento da “prevenção do vício e da promoção da virtude” não foi criado para as tranquilizar, enquanto os conservadores aproveitam o vazio criado pela falta de directivas governamentais para se reorganizarem. As promessas apregoadas todos os dias não fizeram mais do que acentuar o ressentimento das populações já desiludidas e que muitos viam na presença estrangeira a sua salvação.

Quando o Americanos chegaram, toda a população os felicitou, recorda-se Noor Ali, professor em Kandahar. Mas mentiram, e agora não estamos mais interessados no desenvolvimento e reabilitação. Apenas queremos paz e segurança.

Françoise Chipaux (traduzido por: joão Entresede)


Artigo
publicado no jornal Le Monde, dia 12.09.06)

Fotografia: Helmand Province, Afeganistão, 1980, por Steve McCurry.

quinta-feira, setembro 14, 2006

 

EUGÉNIO DE ANDRADE: ENTRE A LUZ E O SILÊNCIO

«viver é iluminar
de luz rasante o vagar do corpo»

Eugénio de Andrade gosta destas definições afirmativas, das quais despe «a camisa quase triste das palavras». Esta ideia poderá ser um bom ponto de partida para penetrarmos na sua obra: sob o signo da poesia, a vida deve ser luz, luz que não desapruma, destruindo tudo, mas que vem ao encontro dos relevos do real abraçando os raios oblíquos, quase horizontais. Esta iluminação intensa tem lugar no interior do corpo, não remete para nenhuma transcendência, mas instala-se sem jamais o transbordar, no campo intrínseco das possibilidades: «É no interior que a boca está iluminada.»
(...)

Patrick Quillier
(tradução por: joão Entresede)

 

Grupo de extrema-direita reivindica atentado de Diyarbakir

A organização de extrema-direita Brigadas da Vingança turca (TIT em turco), reivindicou a autoria do atentado à bomba que terça-feira matou dez pessoas, sete delas crianças, em Diyarbakir, cidade de maioria curda.


Esta informação foi recebida com cepticismo pelas autoridades policiais.

Segundo o canal de televisão Star e a agência de notícias pró- curda Firat, o grupo, além de reconhecer que levou a cabo o atentado, mostrou no seu site da Internet uma fotografia da suposta bomba utilizada.


Na sua página, o TIT, que promete cometer novos atentados em resposta aos ataques perpetrados na Turquia por rebeldes curdos, afirma ainda que "o melhor curdo é o curdo morto".


Num comunicado, esta organização de extrema-direita, afirma que o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, siglas em turco) matou polícias turcos, soldados e jovens em vários lugares do país.


"Prometemos sob a nossa bandeira que, por cada turco que o PKK mate no ocidente, nós mataremos dez curdos em Diyarbakir. O sangue dos não-turcos logo será derramado no chão", asseguram num comunicado.


Segundo fontes da polícia, o engenho utilizado tinha sido colocado num tubo de gás escondido numa câmara frigorífica e activado por controlo remoto através de um telefone portátil.


A bomba, mostrada na página web do TIT, coincide com a descrição dada pela polícia.


TIT é uma organização terrorista de extrema-direita, cuja origem remonta aos anos 70 e que posteriormente assumiu a autoria da tentativa de assassínio de Akin Birdal, presidente da associação turca de direitos humanos, no início dos anos 90.


A explosão ocorreu às 21:00 locais (20:00 de Lisboa) de terça- feira no parque de Kosuyolu, no bairro pobre de Baglart, e perto de uma estação de autocarros.


Segundo a agência de notícias Anatólia, três dos feridos morreram posteriormente num hospital da zona devido à gravidade dos seus ferimentos.


As lojas de Diyarbakir não abriram quarta-feira as suas portas em protesto pelo sucedido e as autoridades declararam três dias de luto oficial.

Agência Lusa

Artigo do site RTP.


 

António Mega Ferreira quer fazer do CCB a Casa do Jazz de Lisboa

O presidente do Centro Cultural de Belém (CCB), António Mega Ferreira, quer fazer uma aposta forte na música contemporânea, esperando mesmo que no futuro o centro venha a ser conhecido como "a Casa do Jazz de Lisboa".


Em entrevista ao Jornal de Letras publicada na edição de hoje, Mega Ferreira fala dos projectos para o CCB, nomeadamente a programação, o tipo de públicos que pretende conquistar, a procura de mecenas e a criação de uma sala de leitura, prevista para 2007.

"Não podemos entrar no século XXI sem termos ouvido a maior parte da música que se fez no século XX. Dirão que não é audível, mas não é audível porque as pessoas não a ouvem. Queremos tirar a música contemporânea do gueto", afirma na entrevista.

Na área da música, o responsável não esconde que gostaria de que o CCB ficasse a ser conhecido como a Casa do Jazz de Lisboa, embora não exista uma sala do centro especialmente vocacionada para este género.

Contudo, em 2007, a administração vai transformar a Cafetaria Quadrante, às quintas-feiras à noite, "num pequeno clube de jazz até às duas da manhã".

Outra novidade será a criação de uma Sala de Leitura, que se chamará Jorge de Sena e ficará a funcionar no centro de reuniões do CCB.

Na temporada que agora se inicia, o centro contará com dois novos espaços, o Auditório Bomtempo, para espectáculos ao ar livre, e o Auditório 3 (com 600 lugares), construído dentro do Centro de Exposições para a Festa da Música, e que a administração decidiu manter para a apresentação de pequenas formações musicais.

O presidente do CCB sublinha, ainda, considerar importante ter no projecto de conclusão do centro um espaço de capacidade intermédia, entre o Pequeno e o Grande Auditório.

Quanto ao público a quem é dirigida a programação, a primeira sob a sua égide, Mega Ferreira defende que o CCB deve ter um leque de espectáculos diversificado, dinâmico, activo e inovador, "sobretudo com uma perspectiva ampla de públicos a que se quer dirigir".

O responsável defende que o CCB deve atrair todo o tipo de públicos, abarcando pessoas de vários gostos, classes, interesses e níveis culturais.

Mega Ferreira referiu, por outro lado, que "a comparticipação do Estado se manteve exactamente na mesma nos últimos cinco anos, um período em que os custos aumentaram 22 por cento".

Assinalou, neste passo, que o CCB tem procurado captar mecenato, conseguiu o apoio da câmara de Lisboa para a Festa da Música - evento que atrai anualmente milhares de pessoas ao centro para ouvir música clássica - e está actualmente a negociar também uma parceria com uma grande empresa.

Agência Lusa

Artigo do site RTP.


 

Jonathan Littell favorito para grande prémio literário em França

O norte-americano Jonathan Littell é considerado favorito a um dos dois grandes prémios literários franceses, o Goncourt ou o Renaudot, que anunciaram uma primeira selecção dos candidatos.

O livro "Les bienveillantes", publicado em França no final de Agosto, tem 900 páginas e é a confissão na primeira pessoa de um antigo oficial nazi dos esquadrões das SS, sendo já um êxito de vendas.

Com uma tiragem inicial de 12 mil exemplares, o livro já teve mais quatro edições, com um total de 110 mil exemplares.

"Houve uma pressão enorme, as encomendas não param. Isso deve-se à ambição do livro, ao seu tema e ao facto de não ter sido um `best- seller` programado", indicou a editora Gallimard.
Dos 475 romances franceses publicados para a "rentrée" literária, apenas 20 estão na corrida para um dos dois grandes prémios literários do Outono.

O nome de Jonathan Littell faz parte das duas listas e é apontado como favorito nos meios literários. O autor é filho de Robert Littell, um dos principais nomes do romance de espionagem.
Atribuído desde 1903, o Goncourt é o mais prestigiado dos prémios literários de França, sendo, tal como o Renaudot, anunciado a 6 de Novembro.

A 26 de Outubro será anunciado o prémio para romance da Academia francesa e a 14 de Novembro o prémio Interallié (inicialmente destinado a escritores jornalistas).

Agência Lusa

Artigo
do site RTP.

 

Marcha em Lisboa contesta a realização de touradas

A VI Marcha Anti-Touradas e de Defesa Animal, vai ser realizada a partir das 17:00, entre o Parque Eduardo VII e a Praça de Touros do Campo Pequeno, com Rui Silva, da Coligação Unidos Contra as Touradas, a assegurar que "a marcha decorrerá em tom pacífico, pretendendo, mais uma vez, mostrar a importância e necessidade do respeito pelos direitos de todos os animais".


Para os organizadores, a marcha "realiza-se num momento em que a consciência social começa a tornar-se mais desperta para esta realidade [touradas]", embora o objectivo seja mais abrangente, "abraçando o direito de todos os animais ao não sofrimento desnecessário, a uma vida digna e de acordo com a sua natureza".


Integram a coligação organizadora da marcha a Associação Acção Animal, o Movimento Anti-Touradas de Portugal, o Grupo de Acção e Intervenção Ambiental, o Movimento Internacional de Defesa dos Animais, a Liga Portuguesa dos Direitos do Animal, o Instituto Zoófilo Quinta Carbonne, o Grupo de Libertação Animal, a Associação de Protecção dos Animais Abandonados do Cartaxo e a INFONATURE.

No decorrer da marcha deverão ocorrer actividades lúdicas, a cargo do grupo Creative Circus e de um grupo de animação de rua do Porto, que terão como objectivo demonstrar que "divertimento não significa sofrimento".

Para o final da acção está previsto um jantar vegetariano".

Agência Lusa

Artigo do site RTP


 

Nunca fomos "todos americanos"

O quinto aniversário dos atentados de 11 de Setembro foi pretexto justificado para uma série de evocações e análises sobre a situação internacional, em particular para um ponto de situação sobre o combate ao terrorismo global.

Pontificou, em várias tribunas, a tese de que os erros de avaliação e as precipitações da Administração Bush tinham desbaratado um suposto capital único de simpatia mundial para com os Estados Unidos, construído na sequência da acção brutal contra as torres de Nova Iorque. E, de facto, quem não se recorda do título de primeira página da edição de 12 de Setembro de 2001 do insuspeito Le Monde. "Somos todos americanos"? E da onda de indignação e solidariedade de que os media, um pouco por todo o lado, se fizeram eco? Foram dias em que um qualquer cidadão norte-americano, que estivesse fora do seu país, terá sentido um calor humano genuíno, de que não havia memória recente.

A verdade, todavia, é que esse estado de espírito de boa parte da opinião pública internacional pouco mais foi do que uma espécie de epifenómeno, com motivações emocionais compreensíveis, mas com previsível vida efémera.

Desde logo, não é certo que, nesses dias de 2001, tivéssemos sido "todos americanos". Não faltou, seguramente, quem, no seu íntimo - contido por motivos óbvios... - tivesse pensado, para utilizar uma expressão corrente, que os americanos "estavam a pedi-las..." E não se deve também esquecer que as populações que se sentiam (e sentem) vítimas da "arrogância imperial" de Washington, nomeadamente no mundo árabe, poucas lágrimas terão chorado pelas vítimas de Nova Iorque. As declarações oficiais de pesar e condolências dos dirigentes políticos estavam longe de traduzir o que ia nos corações dos seus governados.

Vale a pena recordar que o sentimento e as manifestações antiamericanas, em particular na Europa, remotam aos anos da Guerra Fria, orquestradas (e financiadas...) a partir de Moscovo. Quando a NATO tomou a dupla decisão de instalações de mísseis em vários países europeus, a par com a abertura de negociações ao Leste, assistiu-se a uma vaga de contestação nas ruas onde era evidente a inspiração soviética, designadamente através de iniciativas dos partidos comunistas ocidentais.

Há toda uma geração de europeus que percorreu a sua juventude, em termos políticos, a gritar slogans contra quem estivesse no poder em Washington. O desfecho da Guerra Fria, conjugado com as alterações estratégicas na ideologia oficial (e sobretudo na prática quotidiana) chinesa, criou milhões de órfãos do comunismo soviético e do maoísmo. Muitos converteram-se à democracia representativa e espalharam-se pelos partidos do "sistema", mas não falta quem nunca tivesse perdoado aos americanos a responsabilidade pela ruína de tantas ilusões.

Bill Clinton pode não ter sido tão fustigado, na Europa, como George W. Bush. Era uma figura bem mais simpática, um comunicador genial e, além disso, tinha deslizes de comportamento pessoal, desde a juventude, que são vistos com benevolência no Velho Continente. Mas não deixou de bombardear o Sudão na sequência dos atentados da Al-Qaeda contra embaixadas americanas em África. Aliás, os europeus tendem a esquecer que a política externa dos Estados Unidos, independente- mente de ser conduzida por democratas ou por republicanos, assenta em vectores de consenso próprios de uma potência imperial. Ao terrorismo fundamendalista islâmico pouco importa a orientação política da Casa Branca, ou seja, Ben Laden não teria poupado Nova Iorque se, porventura, Al Gore tivesse derrotado George W. Bush. A ameaça de alto risco às sociedades democráticas ocidentais, e em particular aos Estados Unidos, não começou com a eleição de George W. Bush nem acabará se os democratas vencerem as próximas eleições presidenciais.

Os erros da Administração Bush no combate ao terrorismo global, patentes nos planos político, diplomático e militar, deram novos e bons pretextos aos sentimentos antiamericanos que, há décadas, fermentam em paragens variadas. E acrescentaram mais alguns milhões à "procissão" onde desfilam, juntos, interesses de matizes diversas e, por vezes, mesmo contraditórios.

O resto é retórica, pontualmente bem intencionada, de quem não aceita que um eixo atlântico, sólido e equilibrado, é fundamental para preservar a segurança e a liberdade das democracias ocidentais, onde, apesar de tudo, a prática da tolerância e a aceitação da diversidade não têm paralelo no mundo contemporâneo.

Mário Bettencourt Resendes

Artigo opinião publicado no jornal Diário de Notícias.

segunda-feira, setembro 11, 2006

 

Carta n.º 1 - Rainer Maria Rilke

Paris, 17 de Fevereiro de 1903*

CARO SENHOR,

A sua carta chegou-me apenas há alguns dias. Quero agradecer-lhe pela sua grande e estimada confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso debruçar-me sobre o carácter dos seus versos. Não pois não tenho a veleidade de emitir qualquer tipo de juízo de valor. Nada é menos capaz de apreender uma obra de arte do que as palavras críticas: quase sempre resultam daí mal-entendidos mais ou menos felizes. Nem sempre as coisas são tão compreensíveis ou dizíveis como muitas vezes nos querem fazer crer; a maioria dos acontecimentos são inexprimíveis, atigem a sua plenitude num espaço em que nunca nenhuma palavra penetrou, e os mais inexprimíveis de todos são as obras de arte, seres secretos cuja vida permanece depois da nossa se extinguir.

Feito este reparo, permita-me apenas dizer-lhe que os seus versos não possuem um carácter próprio, mas antes indícios discretos e encobertos de personalidade própria. Sinto-o com maior evidência no último poema, «A minha alma». Existe ali algo de peculiar que deseja exprimir-se e revelar-se. E no belo poema «A Leopardi»** surge talvez uma espécie de relação de parentesco com esse grande solitário. Contudo, os poemas ainda não têm identidade própria; não são autómonos - incluindo o último e o que é dedicado a Leopardi. A amável carta que os acompanhou não deixa de esclarecer certas falhas de que me apercebi durante a leitura dos seus versos, sem que, no entanto, consiga mencioná-las em concreto.

Pergunta-me se os seus versos são bons. Pergunta-me a mim. Antes disso, já perguntou a outras pessoas. Envia-os às revistas. Compara-os com outros poemas e fica nervoso quando algumas redacções rejeitam as suas tentativas. Pois bem - e uma vez que me concedeu autorização para o aconselhar - peço-lhe que desista de tudo isso. Está a olhar para o exterior, e isso é algo que não deveria fazer, muito especialmente agora. Ninguém pode dar-lhe conselhos ou ajudá-lo, ninguém. Só existe um meio. Entre em si mesmo. Procure as razões que o levama escrever; verifique se elas lançam raízes nas profundezas do seu coração, pergunte e responda a si mesmo se morreria caso o impedissem de escrever. E acima de tudo: pergunte a si mesmo no mais silencioso da noite: tenho de escrever? Mergulhe nos abismos da sua essência em busca de uma resposta profunda. E caso esta seja afirmativa, se puder responder a esta pergunta séria com um simples e forte «Sim, tenho», então construa a sua vida à volta dessa necessidade; a sua vida tem de tornar-se, até no mais indiferente e insignificante dos momentos, num sinal e num testemunho desse impulso. É então que deve aproximar-se da natureza. Nesse momento procure dizer, como se fosse o primeiro ser humano, o que vê e sente e ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite de início os temas demasiado comuns e correntes: esses são os mais difíceis, pois é necessária uma grande força e maturidade para dar algo de próprio àquilo em que já existem muitas e boas tradições, em parte brilhantes. Por isso, fuja dos motivos mais comuns e prefira aqueles que o seu próprio dia-a-dia lhe proporciona; descreva as suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a fé em relação a qualquer coisa de belo - descreva tudo isso com uma sinceridade íntima, calma, humilde e para os exprimir use as coisas que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos e os objectos de que se recorda. Se o seu dia-a-dia lhe parece pobre, não o lamente, lamente-se a si mesmo, diga a si mesmo que não é sufucientemente poeta para chamar a si mesmo as suas riquezas; pois para o criador nada é pobre nem há lugar pobre ou indiferente. E mesmo que estivesse numa prisão cujas paredes não deixassem chegar até aos seus sentidos nenhum ruído do mundo exterior - não continuaria ainda assim a ter a sua infância, essa maravilhosa e principesca riqueza, essa arca de tesouros que são as recordações? Volte as suas tentações nesse sentido. Procure despertar as sensações esquecidas desse longínquo passado; a sua personalidade sairá reforçada, a sua solidão irá alargar-se e tornar-se numa residência nas horas incertas do dia, e o ruído dos outros passará na distância. - E quando desse voltar-se para o seu interior, quando desse mergulhar na sua própria essência resultarem versos, não lhe ocorrerá sequer perguntar a alguém se esses versos são bons. Também não fará nenhuma tentativa para que as revistas se interessem por esses trabalhos, pois terá para com eles um sentimento de posse muito estimada, verá neles um fragmento e uma voz da sua vida. Uma obra de arte é boa quando surge da necessidade. Na sua forma de origem está o seu veredicto: nenhum outro é possível. Por isso, caríssimo senhor, não poderia dar-lhe outro conselho a não ser este: entre em si mesmo e examine as profundezas das quais a sua vida emana; é na sua fonte que encontrará a resposta à pergunta sobre se deve criar. Assuma-a tal como lhe soa, sem dela duvidar. Talvez tenha a demonstração que está destinado a ser artista. Nesse caso assuma o seu destino e traga-o consigo, ao seu peso e à sua grandeza, sem nunca perguntar pela recompensa que possa vir do exterior. Pois o criador tem de ser um mundo só seu e tudo encontrar em si mesmo e na natureza a que se uniu.

No entanto, talvez tenha de prescindir de ser poeta mesmo depois desta descida em si e à sua solidão (basta, como disse, sentir que se pode viver sem escrever, para que isso nos seja interdito). Mas, mesmo que assim seja, este recolhimento que lhe peço não terá sido em vão. Em todo o caso, a sua vida tomará a partir daí os seus próprios camiminhos, e que estes lhe sejam bons, fecundos e largos, é o que eu lhe desejo mais do que consigo dizer.

Que mais posso acrescentar? Tudo me parece ter sido realçado na sua justa medida; e, por fim, queria apenas aconselhá-lo a crescer de forma calma e séria através do seus processo de amadurecimento; nada poderá perturbá-lo mais do que olhar para o exterior e esperar que de lá venha uma resposta para perguntas a que apenas o seu mais íntimo sentimento nos momentos de silêncio possa responder.

Foi para mim uma alegria encontrar na sua missiva o nome do Senhor Professor Horaèek; guardo por esse amável sábio uma grande admiração e uma gratidão que atravessa o decurso dos anos. Queira transmitir-lhe, por favor, este meu sentimento; apraz-me muito o facto de ele ainda me ter nos seus pensamentos; é algo que sei apreciar.

Ao mesmo tempo devolvo-lhe os versos que amavelmente me confiou. E agradeço-lhe de novo pela grandeza e cordialidade da sua confiança, da qual, através desta resposta sincera e escrita o melhor que sou capaz, procurei tornar-me um pouco mais digno que aquilo que, como estranho, na verdade sou.

Com toda a simpatia e dedicação,
Rainer Maria Rilke

RILKE, Rainer Maria
e WOOLF, Virginia, Cartas a Jovens Poetas, tradução: Lino Marques e Ana Mateus, Relógio d'Água, Setembro de 2003.



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* Vindo do castelo de Haseldorf, em Holstein, onde estivera a convite do príncipe Erich von Schonaich-Carolatch, Rilke chegara a Paris em finais de Agosto de 1902 onde por sugestão de sua mulher, a escultora Clara Westhoff, tencionava escrever uma monografia sobre Rodin. A partir de Outubro instalara-se com Clara na Rue Abbé-de-l'Epée.

** Giacomo Leopardi (1798-1837), escritor italiano, nascido numa família nobre de Recanati, então parte do Estado Pontifício. Teve uma vida de desilusões amorosas e solidão. Deixou uma obra que deu o tom à poesia romântica italiana do séc. XIX.

quinta-feira, agosto 31, 2006

 

EUA SÓ SAEM DO IRAQUE DEPOIS DA VITÓRIA

George W. Bush afirmou hoje que a vitória militar no Iraque é fundamental para vencer a «guerra ao terrorismo». Considerando que os EUA e os seus aliados estão envolvidos numa luta ideológica contra grupos islamistas xiitas e sunitas, onde incluiu em pé de igualdade a Al-Qaeda e o Hezbollah, Bush elegeu o Iraque como o centro dessa guerra, avisando que os EUA «não sairão do Iraque até atingirem a vitória». Falando para soldados veteranos em Salt Lake City, no Utah, argumentou que se os Estados Unidos não enfrentarem os terroristas no Iraque acabarão por enfrenta-los na sua própria casa. Este é o primeiro de uma série de discursos sobre política externa que o Presidente dos Estados Unidos tem programado com vista à batalha eleitoral que se aproxima em que a baixa popularidade do Presidente e a guerra do Iraque parecem ser um grave problema para os republicanos.


George W. Bush fez este discurso no mesmo dia em que acaba o prazo dado pelas Nações Unidas para que o Irão cesse o alegado programa militar nuclear. O presidente americano avisou que haverá consequências caso a via diplomática seja insuficiente. Um relatório da Agência Internacional de Energia Atómica confirma que o Irão não cessou o enriquecimento de urânio. O Irão tinha dado sinais de abarandamento no avanço do seu programa nuclear, mas as actividades de enequecimento terão aumentado poucos dias antes do final do prazo, que termina hoje.Esta série de discursos pretende virar a opinião pública americana em relação à política externa desta administração em vésperas de eleições intercalares para o Congresso. Segundo uma sondagem desta semana da CNN, mais de 60% dos norte-americanos opõe-se à guerra do Iraque. 52% consideram mesmo que a guerra do Iraque é uma distracção em relação ao combate ao terrorismo. Negativa em praticamente todos os pontos, os americanos parecem apenas achar de positivo no seu Presidente o facto de ele ser um líder forte (51%). 54% não o considera honesto, a mesma percentagem que afirma não compartilhar dos seus valores. 58% não confia nele e 51% pensa que Bush não domina assuntos de maior complexidade.

Artigo do site Esquerda.


 

Paz na Europa: três desafios para uma herança

A Europa como projecto político é acima de tudo a materialização de uma certa ideia de paz. Não é uma ideia recente na História. Dante, Sully, Abbée Pierre ou Kant foram precursores de um entendimento da paz ancorado na superação das tensões da diversidade pela unidade dos diferentes. Nesse sentido, pode dizer-se que a lógica de inspiração federalista (embora não necessariamente sob essa designação) marcou, desde sempre, o sonho da paz europeia.


Somos hoje legatários desse velho projecto de paz para a Europa. E se recuarmos ao fim da II Guerra Mundial, talvez possamos figurar em duas organizações europeias então criadas uma dúplice concretização desse velho projecto. De um lado, o Conselho da Europa, guardião da democracia parlamentar, do Estado de Direito e do primado dos direitos humanos como património comum dos europeus. Esse é o pólo da paz pela democracia e pela lei. Do outro lado, a Comunidade Europeia e a prioridade conferida ao derrube de fronteiras à circulação de mercadorias e de capitais. Esse é o pólo da paz pelo comércio e pelo mercado. Convergindo num europeísmo indefectível, os projectos de Europa edificados em Estrasburgo e em Bruxelas nunca foram efectivamente coincidentes: um vê-a emergir da adopção de um código comum (a Convenção Europeia de Direitos Humanos) e de uma fórmula institucional comum (a democracia parlamentar) entre os Estados europeus; outro vê-a fundar-se na progressiva fusão dos mercados e na aproximação de normas e de processos que a integração das economias pragmaticamente impõe. Monnet e Schuman intuíram o horizonte de convergência desses dois pólos na combinação entre desenvolvimento e democracia. Devemos-lhes isso. E, com isso, a paz em que a Europa assente naqueles dois pilares ideológicos e institucionais tem vivido nas últimas décadas.


Mas confiar em que esta integração europeia é automaticamente sinónimo de paz é ingenuidade perigosa. Convirá lembrar que esta Europa foi se cimentou numa contexto circunstancial determinante: a guerra fria. E que não fora esse contexto singular e as dinâmicas de desenvolvimento e de consolidação democrática não teriam ocorrido com a mesma consistência. Importa, pois, interrogar a estabilidade do projecto de paz europeu neste tempo de pós-guerra fria. Em meu entender, três desafios de primeira importância estão aí a exigir a máxima atenção.


O primeiro é o de saber se esse projecto é o de uma paz negativa ou é também, em igual plano, o de uma paz positiva. Quer dizer, a paz ambicionada para a Europa é a da ausência de guerras entre os países europeus ou a de um tecido social avesso à violência estrutural da injustiça e da assimetria de poder? No quadro actual da globalização neoliberal, são visíveis os sinais de retracção, ou mesmo de esvaziamento, do modelo social assente em serviços públicos de acesso universal e de efeito redistributivo da riqueza. E, sendo assim, é a paz social que está em risco. A rua francesa tem dado sinais evidentes desse apodrecimento da paz social às mãos da americanização ou mesmo da asiatização social da Europa.


O segundo desafio é o de saber que lugar há para a paz cultural na Europa. Porque não pode fazer-se apenas de paz física o projecto europeu. Nas nossas sociedades crescentemente multiculturais, paz é cada vez mais sinónimo de respeito escrupuloso pelas diferentes matrizes culturais que se combinam nas cidades da Europa, num intervalo difícil entre o assimilacionismo tutelar e o relativismo demissionista, como a recente polémica sobre as caricaturas de Maomé pôs em evidência. Este novo cosmopolitismo, que a alguns assusta e convida ao regresso às identidades fechadas do passado, é para outros estímulo a uma reinvenção do demos europeu e das políticas que lhe conformam a identidade.


O terceiro desafio é o da opção entre uma paz fechada e uma paz aberta. A Jugoslávia foi a denúncia dramática de que a Europa fortaleza é um projecto condenado ao fracasso. As periferias da Europa de paz – o Magreb, o Médio Oriente, o Cáucaso, os Balcãs, são territórios sísmicos em termos de segurança humana. A resposta da Europa acomodada tem sido a de comprar a contenção dessas periferias turbulentas com envelopes financeiros, com parcerias e com alargamentos condicionados. A paz europeia joga-se, pois, hoje muito mais no Estreito de Gibraltar e na Turquia do que propriamente no seu coração geográfico e nas suas redes de mobilidade internas.

Mais do que no estafado debate entre federalistas e soberanistas, é nestes testes práticos que a paz na Europa se ganhará ou se perderá.

José Manuel Pureza

Artigo opinião retirado do site do Centro de Estudos Sociais.


 

O futuro da democracia

Analisada globalmente a democracia oferece-nos duas imagens muito contrastantes. Por um lado, na forma de democracia representativa, ela é hoje considerada internacionalmente o único regime político legítimo. Investem-se milhões de euros e dólares em programas de promoção da democracia, em missões de fiscalização de processos eleitorais e, quando algum país do chamado Terceiro Mundo manifesta renitência em adoptar o regime democrático, as agências financeiras internacionais têm meios de o pressionar através das condições de concessão de empréstimos. Por outro lado, começam a proliferar os sinais de que os regimes democráticos instaurados nos últimos trinta ou vinte anos traíram as expectativas dos grupos sociais excluídos, dos trabalhadores cada vez mais ameaçados nos seus direitos e das classes médias empobrecidas. Inquéritos recentes feitos na América Latina revelam que em alguns países a maioria da população preferiria uma ditadura desde que lhes garantisse algum bem-estar social. Acresce que as revelações, cada vez mais frequentes, de corrupção levam à conclusão que os governantes legitimamente eleitos usam o seu mandato para enriquecer à custa do povo e dos contribuintes. Por sua vez, o desrespeito dos partidos, uma vez eleitos, pelos seus programas eleitorais parece nunca ter sido tão grande. De modo que os cidadãos se sentem cada vez menos representados pelos seus representantes e acham que as decisões mais importantes dos seus governos escapam à sua participação democrática.

O contraste entre estas duas imagens oculta um outro, entre as democracias reais e o ideal democrático. Rousseau foi quem melhor definiu este ideal: uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém. Segundo este critério, estamos ainda longe da democracia. Os desafios que são postos à democracia no nosso tempo são os seguintes. Primeiro, se continuarem a aumentar as desigualdades sociais entre ricos e pobres ao ritmo das três últimas décadas, em breve, a igualdade jurídico-política entre os cidadãos deixará de ser um ideal republicano para se tornar numa hipocrisia social constitucionalizada. Segundo, a democracia actual não está preparada para reconhecer a diversidade cultural, para lutar eficazmente contra o racismo, o colonialismo e o sexismo e as discriminações em que eles se traduzem. Isto é tanto mais grave quanto é certo que as sociedades nacionais são cada vez mais multiculturais e multiétnicas. Terceiro, as imposições económicas e militares dos países dominantes são cada vez mais drásticas e menos democráticas. Assim sucede, em particular, quando vitórias eleitorais legítimas são transformadas pelo chefe da diplomacia norte-americana em ameaças à democracia, sejam elas as vitórias do Hamas, de Hugo Chavez ou de Evo Morales. Finalmente, o quarto desafio diz respeito às condições da participação democrática dos cidadãos. São três as principais condições: ser garantida a sobrevivência: quem não tem com que alimentar-se e à sua família tem prioridades mais altas que votar; não estar ameaçado: quem vive ameaçado pela violência no espaço público, na empresa ou em casa, não é livre, qualquer que seja o regime político em que vive; estar informado: quem não dispõe da informação necessária a uma participação esclarecida, equivoca-se quer quando participa, quer quando não participa.

Pode dizer-se com segurança que a promoção da democracia não ocorreu de par com a promoção das condições de participação democrática. Se esta tendência continuar, o futuro da democracia, tal como a conhecemos, é problemático.

Boaventura Sousa Santos

Artigo opinião retirado do site do Centro de Estudos Sociais.

quarta-feira, agosto 30, 2006

 

Enriquecimento

De geração em geração atravessa-se a esperança de valorização, de enriquecimento e ascensão social. É um objectivo comum à espécie humana, indepen- dentemente dos credos e cartilhas ideológicas. É verdade que o capitalismo se afirmou na promessa de enriquecimento e na livre iniciativa. Em qualquer caso, a ambição de chegar mais longe do que os antepassados faz parte desde sempre da matriz de progresso humano.

Há muito que os Estados Unidos da América são sinónimo de terra de oportunidades. O sonho americano tornou--se um estereótipo da eficácia dos desejos. E assim foi muitas vezes, assim será muitas vezes. O american way of life vulgarizou-se como paradigma a desejar, invejar e imitar. O cinema e a cultura americana encarregaram-se do contágio global. Não há razões para pensar que durante décadas a mobilidade social não tenha sido muitas vezes vertiginosa nas terras do Tio Sam. Com trabalho e perseverança muitos pobres chegaram a ricos fortalecendo o manifesto progresso.

Já sabíamos que nem sempre a terra das oportunidades era um paraíso. Mi-norias étnicas surgiram duradouramente discriminadas e há um ano o furacão Katrina encarregou-se de o de-monstrar tragicamente. Do que não tínhamos consciência é de que, feitas as contas, afinal, os EUA são no seu todo um dos países onde é mais difícil a um pobre libertar-se da sua condição. Quan-to menores forem os rendimentos dos pais, menores tendem a ser os rendimentos dos filhos. Surpresa, ou talvez não, é na Escandinávia que a igualdade de oportunidades melhores resultados tem produzido. Os EUA não deixaram de ser terra de excelência, mas são cada vez mais terra de desigualdade. A pedra- -de-toque da balança dos rendimentos é a educação. A escola americana preocupa-se sobretudo com as elites. Entre os nórdicos centra-se na garantia de sólidos rendimentos mínimos educacionais.

Portugal aproxima-se dos EUA na desigualdade de rendimentos. A grande maioria dos filhos cujos pais terminaram apenas o ensino primário não conclui o ensino secundário. A escola portuguesa massificou-se, mas não se qualificou. Pior, não se ocupa em garantir a aquisição de conhecimentos básicos a todos os que frequentam o sistema de ensino. Enquanto a escola não se organizar para a eficácia na aprendizagem, apenas os que têm rendimentos e ambiente familiar propício podem contornar as dificuldades. É esse o passo em frente que te-mos de dar. Mais envolvimento na aprendizagem e mais critérios de mérito no escrutínio das oportunidades.

António José Teixeira

Ediorial do jornal Diário de Notícias - 29.08.06.

 

Jornalismo 'vale tudo'

O ex-colaborador da RTP Eduardo Cintra Torres (ECT), que assina alegremente textos nas páginas de media do Público, inventou um novo conceito de jornalismo: o "vale tudo". Para abreviar, o VT.

O VT distingue-se por misturar o que os "livros de estilo" recomendam que não se misture: opinião com informação. Exemplo: ECT critica a RTP pelos seus critérios editoriais. É uma opinião. Para sustentar a opinião, diz que a Direcção da estação recebe ordens do Governo. Trata-se de um facto. Como pode dar processo, ECT transforma--se em jornalista e defende-se com "fontes" que obviamente não denuncia. Está então a dar notícias...

Aplicado ao próprio Cintra Torres (mero exercício de estilo, claro), permitir-me-ia afirmar que, segundo as minhas fontes (eu, jornalista), foi o PSD a encomendar o texto ao crítico, prometendo-lhe que voltará a ganhar dinheiro na RTP quando o partido regressar ao poder. Agora, o "eu cronista" opina: é escandaloso que tal suceda e alguém no Pú-blico devia pôr ordem em ECT. Sem dificuldade, opinei, dei notícias, protegi a minha retaguarda e deixei uma pessoa na lama. É assim que se faz VT. Nunca se saberia se o que escrevi é verdade ou mentira.

A virtude desta espécie de jornalismo é a impunidade: qualquer um pode escrever o que quer debaixo do chapéu das "fontes", ou da liberdade de opinião, conforme a conveniência. ECT sabe como funciona a comunicação: lançada a atoarda, fica o carimbo colado a quem ele critica, e depois quem está mal que se queixe. A justiça não funciona e a memória dos homens é curta. Ele conta com isso.

É Portugal e o português no seu pior: le-viandade na escrita, pose "eu cá é que os topo", esperteza saloia de quem sabe que passa impune, uma pesada ambição de um dia ser realmente respeitado e até mesmo contratado e uma postura arrogante de quem julga saber da matéria. Não sabe. Fez-se crítico porque tanto insistiu que conseguiu. Num país civilizado, há muito que escrevia nas paredes de sua casa, tal a quantidade de insinuações e acusações (por provar) que tem feito, além do conflito de interesses em que cai sempre que colabora com canais de TV. Em Portugal, não só existe como se assemelha a uma voz autorizada. Bom, sejamos rigorosos: a especialidade mais próxima da televisão que ECT alguma vez alcançou foi a vender antenas parabólicas. Seria pior se tivessem sido televendas...

Pedro Rolo Duarte

Artigo opinião publicado no jornal Diário de Notícias.

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