domingo, julho 09, 2006

 

Museu high-tech para um ícone maoista

Perto do parque de Fushun, no centro desta cidade industrial da antiga Mandchourie, encontra-se um estranho memorial em homenagem a um herói defunto. Aqui vive Lei Feng, o ícone mais célebre do maoismo, o modelo do pensamento socialista, aquele cujo Grande Timoneiro classificou de “exemplo a seguir”.

Quem, na China, não conhece Feng? Quem não aprendeu, na escola, as canções elogiando os seus méritos ou recitar os poemas que escreveu para incitar, sem descanso, os seus compatriotas a “servir o povo”? Mesmo que a sua imagem esteja um pouco gasta nestes tempos em que o povo prefere ser servido do que servir, o poder nunca se cansou de utilizar a sua imagem para nos seus actos de propaganda. Pouco importa que seja mais uma invenção dos serviços de propaganda e que nunca tenha existido – como supõem alguns espíritos maliciosos –, o essencial está na maneira de apresentar o retrato santificado desta perfeição humana.

Em 2002, perto da sua tumba, o museu consagrado à vida do herói foi renovado e não hesitaram em utilizar a decoração e as tecnologias mais modernas para retratar o percurso, breve mas emblemático, do antigo soldado. Dois andares, por vezes visitados por grupos escolares, mostram a obra de um grande criador com ecrãs planos a tocar canções sobre o rosto de Lei Feng, o seu Jeep, o seu tractor e fotografias do simpático adolescente.

O percurso do artista foi também intenso e breve. Começa em 1940 numa modesta quinta da província de Human – terra natal de Mao Tsé-Tung… – e termina em Fushun, quando, aos 22 anos, lhe caiu sobre a cabeça um poste telegráfico que pôs fim, prematuramente, à sua promissora carreira. Ficamos a saber, no museu, que o camarada Lei Feng, não teve uma infância fácil. Perdeu os seus pais aos 7 anos. A sua mãe enforcou-se depois de ter sido incomodada pelo explorador da propriedade.

Mas, rapidamente, o nosso herói subiu na hierarquia proletária. Aos 18 anos, é motorista de tractores, depois de escavadoras (algumas reproduções de grandes paisagens naturais de engenhos brilhantes sobre a luz peneirada). Em 1960, alista-se no exército, onde incorpora na 10.ª companhia do regimento génio. Distinguir-se-á pelo seu empenho, pelo seu sentido de dever, pelo seu altruísmo. Por trás dos expositores, podemos ler os seus diários íntimos, ver a sua encharpe, contemplar a sua gamela, a sua taça.

Lei Feng não está nunca fora e moda. No início da sua santificação, citava-se as suas ideias que recomendavam “ser afável também com os camaradas como nos primeiros tempos”. Em 1968, ou seja, seis anos antes da sua morte, a “banda dos quatro” serviu-se dele para criticar o adversário de Mao, o presidente Liu Shaoqi, acusado de “desfigurar a grande imagem de Lei Fung”. Quando o dito bando caiu, demonstrou-se que “seguir o exemplo de Lei Feng, é criticar o banda dos quatro”.

De hoje em diante, é a sua imagem que evolui. O ícone subsiste, o sorriso parece congelado no tempo, mas uma uma história desconhecida, um acessório ignorado vem acrescentar uma legenda à realidade de hoje. Este ano, aquando da publicação de um livro sobre ele – a mais célebre é aquela em que o vemos a atravessar de mota a praça Tiananmen – O Quotidiano da juventude de Pequim vê que a imagem “revolucionária” da personagem “não é totalmente exacta”. Estas fotografias mostram, com efeito, outras facetas desconhecidas, de um jovem ligeiramente flor azul que tem uma namorada, escrevendo poemas de amor, usando um blusão de couro e um relógio no pulso. Desconhecia-se tudo isto.

Alguns temem que a personagem acabe por cair no esquecimento. “Era necessário que ele parece-se bonito, grande, sereno, sem defeitos. A sua imagem é demasiado perfeita já não funciona junto dos jovens”, avançam outros jornais. Fim do mito? Talvez: Lei Feng gasta-se apenas por se servir a si mesmo.

Bruno Philip (traduzido do fracês por joãoGonçalo)

Crónica do jornal Le Monde, publicada no dia 9.07.06


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